Na Berlim pós-guerra, dois anjos, Damiel e Casiel perambulam pela cidade. Invisíveis aos mortais, eles leem seus pensamentos e tentam confortar a solidão e a depressão das almas que encontram. Entretanto, um dos anjos, ao se apaixonar por uma trapezista, deseja se tornar um humano para experimentar as alegrias e tristeza de cada dia.
“Quando a criança era criança, andava balançando os braços. Desejava que o riacho fosse rio, que o rio fosse torrente e essa poça, o mar. Quando a criança era criança, não sabia que era criança. Tudo era cheio de vida, e a vida era uma só. Quando a criança era criança não tinha opinião, não tinha hábitos, sentava de pernas cruzadas, saía correndo, tinha um redemoinho no cabelo e não fazia pose para fotos.”
Era uma vez num céu de uma Berlim tristemente nublada que aparece, como por encanto de Deus, um anjo, o inquieto Damiel (Bruno Ganz). Do alto de um prédio ele observa a cidade com seus humanos perturbados, distraídos, adultos perdidos no vazio dos tempos. Mas uma menina perdida na multidão o vê – apenas às janelinhas das almas dos pequenos é permitida a visão de anjos – e ela, diz: “Olha só”.
Assim, fico imaginando se, agora, ao transcrever “Asas do Desejo” (1987, Direção: Wim Wenders), eu teria, quem sabe, um anjo ao meu lado, me inspirando, seduzindo, soprando, talvez, palavras marotas e ingênuas ao meu ouvido. Ah, se as pessoas pudessem adivinhar o que dizem nossas nuvenzinhas inquietas, ansiosas, devoradoras de tempo e espaço sem linhas, limites ou censura!
Mas os anjos, eles sim, eles sabem, eles acompanham nossos pensamentos, tocam delicadamente nossos corpos e conhecem como ninguém todos os recantos sombrios, os permitidos e os nem tanto.
A névoa toma conta dos céus de Berlim, o infinito de um céu enigmático. São muitas vozes, sussurros, gemidos, frases cortadas, pensamentos confusos […]. Damiel sofre, sufocado pela dor humana.
“Quando a criança era criança, era tempo dessas perguntas: Por que eu sou eu e não você? Por que estou aqui e por que não lá? Quando começou o tempo e onde termina o espaço? Será que a vida sob o sol nada mais é que um sonho? Será que o que vejo, escuto e cheiro não é apenas uma miragem do mundo anterior ao mundo? Será que realmente existe o Mal e pessoas malvadas? Como é possível? Eu, que sou eu não existia antes de existir. E, no futuro, eu, que sou eu não serei mais quem eu sou.”
Damiel, o anjo mais humano que Deus criou, fala ao amigo Casiel (Otto Sander):
“É ótimo ser espírito e testemunhar por toda a eternidade apenas o lado espiritual das pessoas. Mas, às vezes, me canso dessa existência espiritual. Não quero pairar para sempre. Quero sentir um certo peso que ponha fim à falta de limite e me prenda ao chão. Eu gostaria de poder dizer “agora” a cada passo, cada rajada de vento. “Agora” e “agora” e não mais “para sempre” e “eternamente”. Sentar-me numa mesa de jogos sem dinheiro, ser cumprimentado. Todas as vezes que participamos foi apenas fingimento. Lutamos com alguém e fingimos deslocar o quadril. Fingimos pegar um peixe. Fingimos sentar nas mesas, beber e comer. Fingimos ter cordeiros assados e vinhos servidos nas tendas do deserto. Não, não preciso ter um filho ou plantar uma árvore, mas seria bom voltar para casa após um longo dia para comer, como o gato Philip Marlowe. Ter febre, dedos pretos por causa do jornal. Não vibrar apenas pelo espírito, mas por uma refeição pelos contornos de uma nuca, de uma orelha. Mentir…deslavadamente. Sentir os ossos se movendo enquanto caminha. Supor, em vez de saber sempre. Poder dizer “ah”, “oh”, “ei”, em vez de “sim” e “amém”. Outro: Sim. Poder se empolgar com o mal, atrair todos os demônios da terra e sair pelo mundo! Ser selvagem! Pelo menos sentir como é tirar os sapatos debaixo da mesa. Torcer os dedos do pé, descalço, assim.”
O colega perplexo, inconformado com os sentimentos do corajoso Damiel, ainda assim, prefere se manter espírito:
“Ficar sozinho. Deixar acontecer. Ser sério. Só podemos ser selvagens à medida que formos sérios. Nada mais que olhar, reunir, testemunhar, preservar. Continuar espírito. Manter distância. Manter a palavra”.
Mas nada convence Damiel, a humanidade provoca flertando com suas asas há tempos e, no ápice do conflito, no auge da solidão santificada, surge, inesperadamente, sua Marion (Solveig Dommartin), a mulher de cabelos cacheados, a pecadora e Deusa trapezista… que anjo não é.
Aflita com o fim de seu circo, Marion sente pela perda dos bons momentos que em 10 anos serão, apenas, recordações: “O tempo cura, mas e se o tempo for a doença? É como se às vezes tivéssemos de nos curvar para continuar vivendo. Vida, um olhar basta. Vou sentir falta do circo. Engraçado, não sinto nada. É o fim, e não sinto nada. (Damiel está lá, segue Marion, acariciando suas asas artificiais).
Marion se despe, Damiel olha atento cada detalhe, cada movimento, cada olhar: “Nostalgia. Nostalgia de quando bastava estar pronta. (O anjo quase humano toca a pele de seu amor). Nostalgia de uma onda de amor que crescia em mim. É isso que me deixa atrapalhada, a ausência do desejo. Desejo de amar. Desejo de amor.”
“Quando a criança era criança, detestava espinafre, ervilhas, arroz-doce e couve-flor refogada. Agora ela come de tudo, e não apenas porque precisa. Quando a criança era criança, acordou numa cama estranha e hoje isso é frequente. Muitas pessoas lhe pareciam bonitas antes, hoje é raro, só com sorte. Tinha uma visão clara do paraíso, hoje consegue apenas supor. Não conseguia imaginar o nada, hoje treme ao pensar.”
“Você quer mesmo?” Casiel, o anjo resignado, pergunta ao amigo sobre seu desejo de “cair”, perder as asas, virar humano e sentir as alegrias e tristezas dos humanos:
“Sim, quero conquistar a minha própria história. O que aprendi olhando para baixo esse tempo todo, quero transformar num olhar profundo, num grito breve, num odor penetrante. (Os demais desaparecem ao passarem pelo muro). Afinal, estive fora por tempo demais. Ausente o suficiente. Longe o suficiente do mundo. Quero entrar na história do mundo, ao menos para segurar uma maçã. Veja aquelas aves na água, estão desaparecendo. Veja as marcas no asfalto e como rola a bituca de cigarro. O rio primitivo secou, as gotas de chuva ainda tremulam. Abaixo o mundo atrás do mundo.”
Damiel se aproxima de Marion, tocando-a. Ela pensa: “O que estou fazendo? Olho à minha frente e me deixo flutuar no espaço. De novo, aquela sensação de bem estar. Como se, dentro de mim, uma mão suave me apertasse.”
Decidido, o anjo, em seus últimos momentos, comunica Casiel de sua decisão:
“Vou mergulhar de cabeça. Antiga expressão humana muito usada que somente agora entendo. É agora ou nunca, momento do banco de areia. Não há outra margem, o bando só existe enquanto estivermos no rio. Rumo ao banco de areia do tempo e da morte. Desçamos do mirante dos que não nasceram. Olhar, não de cima, mas olho no olho. Primeiro, quero tomar um banho. (Os dois sorriem). Depois, quero ser barbeado por um barbeiro turco que me fará uma massagem até a ponta dos dedos. Comprarei jornal e lerei das manchetes ao horóscopo. No primeiro dia, quero ser servido. Se alguém quiser algo que peça para outro. Se tropeçarem no meu pé, terão de pedir desculpas. Serei empurrado e empurrarei. No bar lotado, o garçom logo me dará uma mesa. Na rua, um carro oficial parará e o prefeito me dará uma carona. Serei conhecido por todos e ninguém suspeitará de mim. Não direi uma palavra e entenderei todas as línguas. Esse será o meu primeiro dia.”
Damiel, enfim, “sente o gosto da humanidade”, olha o chão e vê suas pegadas, sangra. Ele já está colorido, não mais branco e preto. Fecha os olhos e pensa: “é, sua alma já é humana”.
“Quando a criança era criança vivia de maçãs e pão e, ainda é assim. Quando a criança era criança amoras caíam em suas mãos e ainda é assim. As nozes deixavam sua língua áspera, e ainda o fazem. Ao chegar ao topo da montanha, queria outra mais alta. Em cada cidade, deseja outra cidade maior. E ainda o faz. Subia nas árvores para colher cerejas com grande alegria, como hoje. Ficava tímida diante de estranhos, e ainda fica. Aguardava a primeira neve e continua aguardando. Quando a criança era criança atirou uma lança de madeira contra uma árvore a qual tremula ali ainda hoje.”
Nos pensamentos de Marion, o estranho, em sonho, já é seu homem: “Apenas com ele eu poderia ser solitária me abrir para ele, totalmente. Recebê-lo em mim como um ser inteiro. Envolvê-lo num labirinto de felicidade partilhada. Eu sei que ele é você.”
Damiel agora vê e pode ser visto e, como humano, pensa: “Algo aconteceu. Ainda está acontecendo. Me prende. Foi verdade à noite e é verdade agora, neste momento. Quem foi quem? Estive dentro dela e ela, em volta de mim. Quem nesse mundo pode dizer que já esteve unido a outro ser? Eu estou unido. Nenhuma criança mortal foi concebida, mas sim um quadro imortal compartilhado. Aprendi sobre estupefação esta noite. Ela me levou para casa, e encontrei o meu lar. Aconteceu uma vez. Aconteceu uma vez, portanto vai acontecer. A imagem que criamos me acompanhará quando morrer. Terei vivido em seu interior. Somente a estupefação com nós dois, a estupefação com o homem e a mulher me tornou humano. “Eu…agora…sei o que…nenhum anjo sabe.”
Leonardo Boff (2009, p. 26) em “Tempo de Transcendência” lembra que “existem eixos existenciais nos quais a experiência se adensa de forma mais perceptível […] Eis a fina descrição de uma experiência de transcendência, experiência de encontro entre duas pessoas que se enamoram e descobrem o amor, uma experiência que revoluciona a consciência e a vida.”
Referências
BOFF, Leonardo. Tempo de transcendência: o ser humano como um projeto infinito. In: Tempo de transcendência: o ser humano como um projeto infinito. Vozes, 2009.