A família
Eu sou a caçula de 5 filhos. Tive uma infância feliz, ao lado de 3 irmãs e um irmão. Em 1932, meu pai João Scala, faleceu com apenas 44 anos e nossa vida sofreu uma reviravolta. Minha mãe, viúva, com 5 filhos, sem estudo, sem trabalho, não tinha como sustentar a casa. Foi assim que saímos do Rio de Janeiro e viemos para São Paulo, morar numa casa muito pobre, no bairro do Belém. Meus tios, primos e avós moravam em São Paulo.
Meu pai vendia produtos italianos e por sua ligação com socialismo, ele foi muito boicotado. Os produtos quase não chegavam. Ele começou a ter dificuldades no trabalho e problemas de saúde.
Minha mãe chamava-se Elvira, e era uma pessoa de muita força de vontade. Quando meu pai morreu, ela ficou abatida, mas não desanimou. Foi à luta. Como ela não tinha uma profissão, resolveu costurar para as operárias de uma fabrica. Eram pessoas simples, com pouca exigência.
Tínhamos uma vida boa no Rio de Janeiro. Meus irmãos estudavam nas melhores escolas, mas quando viemos para São Paulo eles precisaram parar os estudos para trabalhar.
Quando viemos do Rio de Janeiro, eu tinha 9 anos. Meu irmão era muito estudioso, mas teve que parar os estudos e trabalhar de office boy. Quando você fica sem marido e com 5 filhos para criar, quem se propõe a ajudar também quer dar ordens na sua vida e minha mãe não aceitava isso, então ela preferia depender do trabalho dela e dos filhos.
Moramos oito anos nessa casa no bairro do Belém. A casa era muito pobre. Tínhamos 4 caixotes para sentar, uma mesa e dormíamos dois em cada cama. Eu tinha feito até o segundo ano primário no Rio de Janeiro, terminei o curso primário aqui em São Paulo, mas para fazer o ginásio, eu precisava me preparar, mas minha mãe não tinha dinheiro. Eram poucas vagas, era necessário fazer um exame.
Uma amiga da minha mãe se ofereceu para me ajudar e começou a me dar aulas. Eu concorri com 2 mil pessoas para entrar a escola Normal Padre Anchieta e fui a primeira colocada. A senhora que me ajudou ficou muito orgulhosa e eu, muito contente.
Serena com 15 anos
A perseverança
Quando terminei o ginásio pensava em estudar na USP, porque era o único lugar que eu poderia cursar. Não tínhamos dinheiro para pagar um curso colegial. Começa então minha luta para continuar os estudos. Fiz o ginásio com muita dificuldade. Minhas roupas eram sempre modestas. Algumas colegas apareciam sempre com uma blusinha nova, com a saia engomada e eu com um único uniforme. Tinha um fiscal de escola que me dizia que eu precisava me arrumar melhor, mas eu só tinha um uniforme.
Em 1941, quando terminei o ginásio, não era obrigatório ter certificado do colegial para entrar na Faculdade. O Florestan Fernandes era nosso amigo de infância e trabalhava com meu irmão. Ele havia prestado exame direto para a Faculdade de Sociologia, e me incentivou a fazer o mesmo. Eu tinha muito medo do Latim, sabia pouco. Meu professor de latim era um seminarista que colocava um texto na lousa e só traduzia, não ensinava a gramática. Eu decorava tudo. Um amigo do meu irmão, que era bom em latim me deu aulas durante 3 meses. Estudei todo o texto de “A conquista da Gália”, em latim. Classificava todas as orações, fazia todos os exercícios. Estudei muito, estudava na biblioteca Mário de Andrade, porque não dava para comprar livros.
Em 1942 fui prestar as provas na USP. Eram três provas: Português, Inglês e Latim. Depois tinha uma prova oral. Guardo até hoje o texto da prova de português. Era de Camões. Eu era boa em português. Consegui fazer o exame de português, de latim, de inglês, eu fiquei esperando a nota de latim para prestar a prova oral das três disciplinas.
Depois das provas, um professor me chamou e disse: você está fraca no latim, mas como suas outras notas estão boas, você conseguiu passar. Fiquei muito feliz. Entrei na Faculdade de Filosofia da USP com 19 anos, sem colegial.
Cursei a cadeira de Inglês de 1942 até 1944. Eu tive aulas de alemão, psicologia, filologia, genética, administração, sociologia e outras disciplinas.
A USP funcionava na Caetano de Campos. Algumas disciplinas eram lá e outras na Alameda Glete. Nessa época a maioria dos professores era estrangeira. Estudei psicologia com a excelente professora Rudolfer. Tinha o professor Bonson, o professor Moura, o professor Dreifuss e o professor Cândido de Figueiredo. O professor Bonson dava aulas em francês.
Minha avó materna tinha 8 filhos, eles eram muito pobres, e foram morar em Marselha; minha mãe e minha tia, que eram as mais velhas falavam francês. De tanto ouvir, eu aprendi. Conseguia entender tudo nas aulas em francês. A maioria não entendia nada das aulas do Professor Bonson. Uma colega nossa, a Marlize, uma judia francesa, fazia a apostila, traduzia e vendia para os colegas.
Hoje a USP não é mais o que era. Nos primeiros anos, os professores vinham de Portugal, da França, da Itália. Eram todos muito bons. Havia também bons professores brasileiros.
Com essa entrada antecipada na faculdade ganhei 3 anos, mas em compensação eu não aprendi uma palavra de grego. Para mim grego é grego mesmo. Meu marido lê em grego porque ele estudou na Itália e lá eles aprendiam o grego. Mesmo a continuação dos estudos da matemática e da biologia, ficou faltando.
Quando saí da Faculdade, logo arrumei um emprego na Escola Elvira Brandão, na Alameda Jaú. Lecionei Inglês nessa escola durante 3 anos. Concomitantemente lecionava no Colégio Madre Cabrine na Vila Mariana. Fui lecionar também no Colégio Sion. Uma antiga professora minha do ginásio foi quem me convidou. Lecionei ainda no Colégio Santa Inês, no Dante Alighieri, no Ginásio Jabaquara e outros.
O namoro
Um dia chegou um primo da Itália, que eu não conhecia nem por fotografia e nos apaixonamos. Foi amor à primeira vista. Eu tinha 25 anos e ele 20. Quando Romano chegou da Itália, de navio, todos foram buscá-lo, eu e minha irmã ficamos fazendo o jantar. A família estava toda reunida para recebê-lo. Ele veio para morar na minha casa. As primas ficaram encantadas com ele. Elas diziam: ele me beijou… ele me beijou. Eu fui a última a ser beijada. Depois começou a contar sobre a vida na Itália, sobre a guerra. Ele era muito bonito, um galã. Era novo, não tinha feito faculdade ainda e só falava italiano. Comecei a ensinar o português para ele e ele começou a me ensinar arte. Os italianos têm uma formação artística muito boa.
Serena e Romano, ano 1950
Tínhamos uma convivência muito próxima e com isso fomos descobrindo que gostávamos um do outro. Eu nunca tinha me apaixonado antes. Aquela vivência, aquela maturidade, aquela inteligência, aquela cultura. Eu não o sentia mais novo. Ele era mais maduro que outros rapazes que eu tinha conhecido apesar dos seus 20 anos.
Namoramos só um ano. Quando resolvemos casar foi aquele problema. Minha mãe dizia: você é mais velha que ele, ele é seu primo irmão, não pode. Fomos consultar um médico especialista em genética, e ele nos explicou que se houvesse uma doença transmissível, alguma doença genética grave na família, poderia aparecer nos filhos. Caso contrário, é como qualquer outro casamento. Graças a Deus nunca tivemos problemas. Meus filhos nasceram bem, estudaram e nada de ruim aconteceu.
Quando marcamos o casamento, Romano foi falar com meu irmão mais velho, e com a minha mãe, porque meu pai já havia falecido. Quando ele deu a notícia para minha mãe ela disse: muda-se filho! Porque agora você não pode morar mais aqui. Ele foi morar com a minha irmã mais velha que já era casada e tinha 4 filhos. Romano ficou lá até casarmos.
Eu lecionava em escola religiosa, e naquele tempo, as escolas religiosas eram bem diferentes. Quando fomos fazer os papéis do casamento, o padre descobriu que nós éramos primos irmãos (a mãe dele era irmã da minha mãe), ficou indignado, e disse para o Romano: ou você escreve uma carta ao papa pedindo autorização e paga uma taxa, ou você escolhe outra noiva.
Casamos só no civil. Coloquei um vestido muito simples. Nunca tinha ido à cabeleireira, fiz um corte de cabelo que ficou horrível!
O casamento
Casamos no dia 20 de janeiro de 1951. Nós que fizemos os nossos primeiros móveis. Eu que fiz todos os docinhos do casamento. Tinha perdido o emprego nas duas escolas e o Romano estava no primeiro emprego, carregando caixas na Mesbla. Depois foi trabalhar no balcão da loja. Logo nasceram os filhos e eu tive que parar de lecionar durante um tempo.
O Romano foi trabalhar em São Bernardo na FIAT e mudamos para lá. Depois voltamos para São Paulo novamente. Algum tempo depois ele começou a trabalhar numa exportadora na área da economia. Conseguiu se tornar gerente, depois diretor superintendente e a nossa vida foi melhorando rapidamente.
O casamento não foi assim tudo certinho. Ele, como um bom italiano, é temperamental e, eu, como boa filha de italiano, também tenho um gênio forte. Em algumas coisas combinamos, em outras não. Ele viveu no fascismo e eu no socialismo com os exemplos do meu pai. Se eu não tivesse personalidade firme, ele acabaria mandando em mim. Ele é de uma geração onde o homem mandava. Mas a gente se ama muito, se respeita e vivemos bem. Fizemos 56 anos de casados, foi um casamento por amor.
Serena e Romano, ano de 2006
Os filhos
Tenho três filhos. O mais velho é o Sérgio, que nasceu 9 meses depois do meu casamento. Depois tive a Laura, é filha, é amiga e conselheira. É muito atenta, qualquer coisa corre para me atender. Tenho uma filha adotiva, a Maria José.
Quando a Laura nasceu, minha placenta não saiu toda e tive que ficar no hospital. Corria o risco de ter febre puerperal. O médico me falou que eu poderia ter um derrame se tivesse outra criança. Passei a me controlar e depois fiz laqueadura. Naquele tempo chamava-se amarrar as trompas.
Um dia levei meus filhos para visitar uma creche e, chegando lá, as crianças correram para nos abraçar. Ficamos brincando com as crianças e uma delas, a Maria José, com 6 anos, nos chamou a atenção. Tinha os olhos tristes. Era sexta-feira e eu pedi para a freira deixar ela passar um final de semana conosco. As crianças brincaram o final de semana inteiro com ela. Quando chegou a hora dela ir embora, olhou-nos e enxugou as lágrimas no vestidinho. Aquilo cortou o meu coração. Falei para o Romano: os nossos já estão crescidinhos, podemos adotar um. Ele foi falar com a freira e ficamos um período com ela até sair a autorização da adoção.
Maria José teve muitos problemas de infância que deixaram seqüelas. Ela tem algumas limitações cognitivas. Não podemos exigir muito dela. Mas ela é responsável. O pediatra que cuidou dela dizia que ela não conseguiria nem terminar o primário e com minha ajuda ela conseguiu estudar até o ginásio. Ela me cobra porque não fez a faculdade, mas devido sua limitação, ficou difícil continuar os estudos. Ela ainda mora comigo, é solteira e está com 50 anos. Já está entrando na menopausa. Quando estava na escola, sofria discriminações de colegas por ser diferente.
Ela tem qualidades muito boas, mas não é carinhosa, tem dificuldade. Numa ocasião, fiquei dois dias internada no hospital, e ela nem percebeu. Não é culpa dela. Não teve cuidados, sofreu muito, e não teve estímulos na idade adequada. Ela tem um coeficiente de inteligência baixo, por falta de cuidados. Converso, explico, ensino, mas ela faz do jeito dela. Ela não tem a noção de algumas regras, de horários. Quando ela sai de casa, quero que ela volte antes de escurecer.
Uma vez ela chegou meia noite, porque o carro do rapaz quebrou. Ele a colocou num trem e ela chegou aqui. Ela não se perde, mas ela não conseguiu trabalhar mais do que dois meses. Nós cuidamos dela, pagamos um plano de saúde para ela. Quando eu a adotei, queria mudar o nome dela para Ana Maria, e dar-lhe um sobrenome. Mas não pude mudar o nome. O nome oficial é Maria José, mas para a família é Ani, de Anamaria, o nome que eu lhe dera.
Tenho 6 netos e já vou ser bisavó. Meu neto mora na Itália, mas para minha alegria meu bisneto vai nascer no Brasil
O trabalho voluntariado
Estou na APAE há 26 anos, já trabalhei muito, sou a voluntária mais antiga do setor educacional. Trabalhei como voluntária na AACD de São Paulo, no setor de fisioterapia. Isso foi há 30 anos. Fiquei lá durante 4 anos. Quando descobriram que eu sabia inglês, como havia poucos livros técnicos em português, me pediram para traduzir um livro de fisioterapia.Traduzi quase o livro inteiro.
Precisei fazer uma viagem e deixei uma sobrinha no meu lugar na AACD. Fiquei alguns meses fora, e quando voltei, fui visitar o setor educacional da APAE, gostei e estou lá até hoje.
Meu gosto pelo trabalho voluntário vem do meu pai. Ele era italiano e quando veio para o Brasil, juntou-se a um grupo de idealistas e fundou o partido socialista. Ele falava sempre dos problemas dos operários, das classes mais humildes, da assistência aos pobres.
A saúde
Minha saúde sempre foi boa, exceto por alguns episódios de laringite na infância. Em 1978 fomos morar por 8 meses em Manaus, meu marido trabalhava o dia inteiro e eu estava sem atividades, longe dos filhos, dos netos, e essa situação, sem que eu percebesse, me levou ao que chamamos hoje de “stress”. Tive um problema de fibrilação e desde então tomo uma medicação para o coração e para a pressão. Pensei que fosse viver somente mais uns 5 ou 6 anos e vejam só: lá se vão 30 anos. Aleluia!
Aposentadoria
Hoje estou pedindo minha aposentadoria ao governo. Lecionei 19 anos mas só consegui confirmar para a aposentadoria 16 anos. Viajávamos bastante e parei de lecionar o que hoje me impede de receber minha aposentadoria integral. Assim recomendo aos meus filhos e netos, que nunca parem de trabalhar e contribuir e, se possível, que façam um plano de aposentadoria complementar. É importante na velhice!
Religião
Minha religiosidade se resume em ir à igreja quando não há quase ninguém. Rezar todos os dias, com as palavras que me pareçam sinceras. Pelos familiares, pelos amigos e doentes.
Uma mensagem
Não tenha medo da velhice. Enfrente-a com coragem. Depende muito de você. Não pare de estudar, de aprender, de acompanhar o desenvolvimento. Evolua junto, é uma maneira de você envelhecer mais lentamente e não sentir tanto os efeitos da velhice.