Antonio Prata, escritor e colunista do Jornal Folha de S.Paulo começa seu texto semanal: “Estava trabalhando na varanda, com o laptop no colo, quando ouvi a batida, leve e abafada, no jardim. Olhei para frente ainda a tempo de ver o pequeno borrão quicando na grama. Demorei um pouco para entender do que se tratava: um passarinho, recém-caído do céu, agora jazia inerte, a dois metros de mim. Morto?”.
Mas, muito cuidado, caro leitor com as ciladas da língua portuguesa. O menos avisado pode pensar: expiar ou espiar? Expiar quer dizer sofrer, reparar ou remir um crime, um pecado, uma falta, uma pena: “Expiamos eternamente nossos pecados”. Já espiar significa observar secretamente, com o intuito de obter informações, espionar, olhar às escondidas
Retornando para Prata: “Eu, nascido e criado em apartamento, jamais havia presenciado a morte de um passarinho. Então é assim? Uma bela tarde, está ele lá, voando, minhocando suas caraminholas e, ploft!, despenca das nuvens?”.
É isso, “ploft”, e tudo termina, até para um “suposto” inocente. Natural que nos cause surpresa, quem imagina que a “temida” vá, justamente, lançar seu destemido olhar para aquele que nunca lhe fez mal algum. Seria uma determinação do Supremo recolher os pobrezinhos? A Morte, sua eterna subordinada, teria escolhas? Hierarquia é coisa séria, dá demissão em muitos casos, até justa causa! Então, quem sabe, não devêssemos parar de recriminar a “maldita”. Talvez ela, apenas, cumpra ordens e as execute quando menos se espera. Prata questiona justamente este caráter inusitado e inexorável de quem também sofre pelo ato.
O escritor divaga: “Não deixa de ser poético. Sempre discordei desse povo que torce para morrer dormindo. Quando a indesejada das gentes chegar, também quero ser pego em pleno voo; aos 124, claro, mas bem desperto, para poder olhar ao redor uma última vez, dizer ‘ah, então era isso?’, encarar a estraga-prazeres de frente, mostrar-lhe a língua e, enfim, deixar de existir”.
Rebeldia com a “indesejada das gentes”, de nada serve. Morrer sem vê-la, seria perder a única chance, possível, de estar cara a cara com um Ser que nos amedrontou por toda a vida. Fazer-lhe perguntas, mesmo que sem palavras, entender os mistérios, os enigmas, o incompreensível para quem está do lado de cá, seria a mais sublime das benções. Com isso, morreríamos em paz com nossas angústias, viajaríamos para o lado de lá com o tão desejado conhecimento das coisas.
Mas nessa luta inglória entre cá e lá, um sopro de vida se anuncia, a chama da vela hesitou, hesitou e não apagou. Vitória, o frágil passarinho de Prata, ainda respira. Ele conta: “Um movimento na grama, contudo, sugeriu-me que ainda era cedo para as funestas divagações: o pássaro não estava morto. Com dificuldade, ergueu-se e assim quedou-se, petrificado. Da minha cadeira, vi seu coração pulsando, aflito como as últimas voltas do peão, e em seus olhos reconheci o desespero mudo do afogado, que sabe que chegou até a praia, mas que dali não sairá. Levantei-me, com cuidado para não assustar o bicho, e fui até ele. Nem se mexeu. Mais alguns suspiros e já era, pensei, consternado”.
Movimentos difíceis entre os dois mundos, qual porta se abrirá primeiro? O corpo quer descanso, já a mente quer movimento, mergulhar no verde, se fartar pelo cheiro das rosas, de preferência as vermelhas e cantar loucamente para os amantes urgentes. A mente quer voar e pousar em muitos parapeitos de janelas desconhecidas, alimentar a imaginação dos poetas e ser a razão do seu viver.
Como bem lembra o escritor: “Passarinhos são os padroeiros dos cronistas. Machado de Assis comparou o folhetinista ao colibri, ‘que salta, esvoaça, tremula (…) e espaneja-se sobre todos os caules suculentos’. O primeiro livro de Rubem Braga foi ‘O Conde e o Passarinho’. O último do meu querido Humberto Werneck chama-se ‘O Espalhador de Passarinhos’. Fer-nando Sabino tem uma crônica antológica sobre o sabiá. ‘Bichos do Sítio’, um dos lindos textos do recém-lançado ‘Certos Homens’, do Ivan Ângelo, começa com um urubu e termina com uma galinha. (Passarões, é verdade, mas pássaros, mesmo assim.)”.
Complementando Prata e todos os mestres que escrevem pelos pássaros, trago a letra da música de quem, quase esteve lá, Milton Nascimento ‘O Rouxinol’: Rouxinol tomou conta do meu viver, chegou quando procurei, razão pra poder seguir. Quando a música ia e quase eu fiquei. Quando a vida chorava mais que eu gritei. Pássaro deu a volta ao mundo e brincava. Rouxinol me ensinou que é só não temer, cantou, se hospedou em mim. Todos os pássaros, anjos dentro de nós, uma harmonia trazida dos rouxinóis.
Pássaros, mensageiros de Deus, que trazem e levam mensagens. Cumprem seu ofício entre os mundos, vão e vem até o dia que só irão.
Ainda acreditando que seu mais novo e nobre colega, o pássaro lutador, iria dessa para outra, Prata decidiu proporcionar alguma dignidade a seus derradeiros instantes. “Pensei em botar um Chet Baker no iTunes, mas me pareceu exagerado. (Além do mais, vai saber de seus gostos musicais? Imagino não haver nada pior, na hora da morte, do que uma trilha sonora equivocada.) Contentei-me em trazer-lhe um pires com água fresca. (Não sei por que, mas me veio a ideia de que morrer dá uma sede danada.)”
É, morrer, deve dar uma “sede danada da vida” que vai ficar para trás. Mas a ideia do inconformado escritor foi boa: a música poderia distrair o pequenino do seu inevitável fim.
Este tempo da espera parece arrasador. Se já esperamos tanto na vida, por que temos que esperar novamente a morte chegar, em pleno momento de dor? Prata descreve a agonia da espera: “Por 15 minutos, ficamos ali, frente a frente. Um quarto de hora durante o qual ele não moveu, literalmente, uma pena. Então, como se fosse a coisa mais natural desse mundo, chacoalhou a cabeça, gingou com o pescoço no melhor estilo Axl Rose, deu um salto de 180º e saiu voando -não sem antes deixar sobre o pires um sinal inconteste de vitalidade e, sobretudo, de humor: um cocô, um belo, alvinegro cocô de passarinho, pintura abstrata, teste de Rorschach [referindo-se a uma técnica de avaliação psicológica denominada de teste projetivo, ou mais recentemente de método de autoexpressão] onde vi estampada a minha ignorância: sobre a morte, sobre a vida e, acima de tudo, sobre passarinhos”.
Belíssima afirmação, Prata: de fato, nada sabemos, nem mesmo sobre aquilo que a soberba insiste em nos convencer de que “somos o máximo”. Se nem mesmo sobre passarinhos, seres da natureza, temos conhecimento, o que dirá sobre a delicada e controvertida existência!
“O homem espia o homem, inexoravelmente”. Ciro dos Anjos – “O Amanuense Belmiro”
Antonio Prata, escritor e colunista do Jornal Folha de S.Paulo começa seu texto semanal: “Estava trabalhando na varanda, com o laptop no colo, quando ouvi a batida, leve e abafada, no jardim. Olhei para frente ainda a tempo de ver o pequeno borrão quicando na grama. Demorei um pouco para entender do que se tratava: um passarinho, recém-caído do céu, agora jazia inerte, a dois metros de mim. Morto?”.
A morte surpreende. Até quando vem golpeando um inocente passarinho que nada lhe fez, não tem pecados para expiar (aliás, título muito bem escolhido pelo autor), nem culpas para carregar e muito menos tristezas para acumular. Como deve ser boa a vida deste “serzinho” que apenas voa, livre, leve e muito próximo de Deus e das nuvens em que o Divino deve descansar quando fatigado pelas mazelas dos seres humanos.
Mas, muito cuidado, caro leitor com as ciladas da língua portuguesa. O menos avisado pode pensar: expiar ou espiar? Expiar quer dizer sofrer, reparar ou remir um crime, um pecado, uma falta, uma pena: “Expiamos eternamente nossos pecados”. Já espiar significa observar secretamente, com o intuito de obter informações, espionar, olhar às escondidas
Retornando para Prata: “Eu, nascido e criado em apartamento, jamais havia presenciado a morte de um passarinho. Então é assim? Uma bela tarde, está ele lá, voando, minhocando suas caraminholas e, ploft!, despenca das nuvens?”.
É isso, “ploft”, e tudo termina, até para um “suposto” inocente. Natural que nos cause surpresa, quem imagina que a “temida” vá, justamente, lançar seu destemido olhar para aquele que nunca lhe fez mal algum. Seria uma determinação do Supremo recolher os pobrezinhos? A Morte, sua eterna subordinada, teria escolhas? Hierarquia é coisa séria, dá demissão em muitos casos, até justa causa! Então, quem sabe, não devêssemos parar de recriminar a “maldita”. Talvez ela, apenas, cumpra ordens e as execute quando menos se espera. Prata questiona justamente este caráter inusitado e inexorável de quem também sofre pelo ato.
O escritor divaga: “Não deixa de ser poético. Sempre discordei desse povo que torce para morrer dormindo. Quando a indesejada das gentes chegar, também quero ser pego em pleno voo; aos 124, claro, mas bem desperto, para poder olhar ao redor uma última vez, dizer ‘ah, então era isso?’, encarar a estraga-prazeres de frente, mostrar-lhe a língua e, enfim, deixar de existir”.
Rebeldia com a “indesejada das gentes”, de nada serve. Morrer sem vê-la, seria perder a única chance, possível, de estar cara a cara com um Ser que nos amedrontou por toda a vida. Fazer-lhe perguntas, mesmo que sem palavras, entender os mistérios, os enigmas, o incompreensível para quem está do lado de cá, seria a mais sublime das benções. Com isso, morreríamos em paz com nossas angústias, viajaríamos para o lado de lá com o tão desejado conhecimento das coisas.
Mas nessa luta inglória entre cá e lá, um sopro de vida se anuncia, a chama da vela hesitou, hesitou e não apagou. Vitória, o frágil passarinho de Prata, ainda respira. Ele conta: “Um movimento na grama, contudo, sugeriu-me que ainda era cedo para as funestas divagações: o pássaro não estava morto. Com dificuldade, ergueu-se e assim quedou-se, petrificado. Da minha cadeira, vi seu coração pulsando, aflito como as últimas voltas do peão, e em seus olhos reconheci o desespero mudo do afogado, que sabe que chegou até a praia, mas que dali não sairá. Levantei-me, com cuidado para não assustar o bicho, e fui até ele. Nem se mexeu. Mais alguns suspiros e já era, pensei, consternado”.
Movimentos difíceis entre os dois mundos, qual porta se abrirá primeiro? O corpo quer descanso, já a mente quer movimento, mergulhar no verde, se fartar pelo cheiro das rosas, de preferência as vermelhas e cantar loucamente para os amantes urgentes. A mente quer voar e pousar em muitos parapeitos de janelas desconhecidas, alimentar a imaginação dos poetas e ser a razão do seu viver.
Como bem lembra o escritor: “Passarinhos são os padroeiros dos cronistas. Machado de Assis comparou o folhetinista ao colibri, ‘que salta, esvoaça, tremula (…) e espaneja-se sobre todos os caules suculentos’. O primeiro livro de Rubem Braga foi ‘O Conde e o Passarinho’. O último do meu querido Humberto Werneck chama-se ‘O Espalhador de Passarinhos’. Fer-nando Sabino tem uma crônica antológica sobre o sabiá. ‘Bichos do Sítio’, um dos lindos textos do recém-lançado ‘Certos Homens’, do Ivan Ângelo, começa com um urubu e termina com uma galinha. (Passarões, é verdade, mas pássaros, mesmo assim.)”.
Complementando Prata e todos os mestres que escrevem pelos pássaros, trago a letra da música de quem, quase esteve lá, Milton Nascimento ‘O Rouxinol’: Rouxinol tomou conta do meu viver, chegou quando procurei, razão pra poder seguir. Quando a música ia e quase eu fiquei. Quando a vida chorava mais que eu gritei. Pássaro deu a volta ao mundo e brincava. Rouxinol me ensinou que é só não temer, cantou, se hospedou em mim. Todos os pássaros, anjos dentro de nós, uma harmonia trazida dos rouxinóis.
Pássaros, mensageiros de Deus, que trazem e levam mensagens. Cumprem seu ofício entre os mundos, vão e vem até o dia que só irão.
Ainda acreditando que seu mais novo e nobre colega, o pássaro lutador, iria dessa para outra, Prata decidiu proporcionar alguma dignidade a seus derradeiros instantes. “Pensei em botar um Chet Baker no iTunes, mas me pareceu exagerado. (Além do mais, vai saber de seus gostos musicais? Imagino não haver nada pior, na hora da morte, do que uma trilha sonora equivocada.) Contentei-me em trazer-lhe um pires com água fresca. (Não sei por que, mas me veio a ideia de que morrer dá uma sede danada.)”
É, morrer, deve dar uma “sede danada da vida” que vai ficar para trás. Mas a ideia do inconformado escritor foi boa: a música poderia distrair o pequenino do seu inevitável fim.
Este tempo da espera parece arrasador. Se já esperamos tanto na vida, por que temos que esperar novamente a morte chegar, em pleno momento de dor? Prata descreve a agonia da espera: “Por 15 minutos, ficamos ali, frente a frente. Um quarto de hora durante o qual ele não moveu, literalmente, uma pena. Então, como se fosse a coisa mais natural desse mundo, chacoalhou a cabeça, gingou com o pescoço no melhor estilo Axl Rose, deu um salto de 180º e saiu voando -não sem antes deixar sobre o pires um sinal inconteste de vitalidade e, sobretudo, de humor: um cocô, um belo, alvinegro cocô de passarinho, pintura abstrata, teste de Rorschach [referindo-se a uma técnica de avaliação psicológica denominada de teste projetivo, ou mais recentemente de método de autoexpressão] onde vi estampada a minha ignorância: sobre a morte, sobre a vida e, acima de tudo, sobre passarinhos”.
Belíssima afirmação, Prata: de fato, nada sabemos, nem mesmo sobre aquilo que a soberba insiste em nos convencer de que “somos o máximo”. Se nem mesmo sobre passarinhos, seres da natureza, temos conhecimento, o que dirá sobre a delicada e controvertida existência!
“O homem espia o homem, inexoravelmente”. Ciro dos Anjos – “O Amanuense Belmiro”
Referências:
IMAGEM. Menino com Pássaro, 1957 de Cândido Portinari. Disponível Aqui. Acesso em 07/12/2011.
PRATA, A. Expiar. Disponível Aqui. Acesso em 07/12/2011.