Pouco importa a quem a morte nos impôs a separação. Cachorro? Esposa? Irmão? A dor é pelo amor que sentimos, afinal é este sentimento que dá sentido às relações.
Tenho estado pensativa e notado o enorme vazio que foi instalado em meus dias depois da sua morte. Nos nossos quase 18 anos de convívio, com ela, aprendi a exercer o amor na sua mais sincera forma.
Fazia tempo que não perdia alguém tão próximo e, bem assim, sem nem sequer ser consultada.
Ela era uma cachorra, mas este fato não faz menos sofrida a nossa separação física, já que esses seres são responsáveis por tantos ensinamentos capazes de modificar nossa maneira de existir. Ela assim o fez e com maestria.
Seus dias eram vividos unicamente pelo meu amor e olha que eu bem dizia antes de sair para trabalhar: Vai, Nina! Vai viver sua vidinha! Mas ela insistia em pausar seu viver até a hora que eu voltava para casa. Estávamos sempre juntas e eu, facilmente negava outros programas, apenas para ficar com ela.
Exagero? Talvez! Mas como valeu a pena cada instante. Sua velhice nos uniu ainda mais. Por não enxergar direito, sentia-se muitas vezes insegura. Insegurança que demonstrava com latidos e “apitos” que eram um aclamar por companhia. Quando deixou de ser velha para ser muito velha, nossa relação ficou ainda mais intensa. Estávamos sempre juntas e meu colo serviu de aconchego e transporte para sua velhice avançada.
Era um tal de “pega Nina, leva a Nina, tira a Nina, abraça a Nina, cobre a Nina, segura a Nina” o dia todo já que fazia questão absoluta de vê-la participando da vida e da vida em família. Agora que ela se foi, a sensação de falta, é imensa.
Miolo de pão com requeijão camuflavam os comprimidos. Entre um carinho e outro, um pingar de colírio, o dia se iniciava repleto de afeto. Momento finalizado com uma pequena maçã, cortada em pedaços delicados e que ela comia fazendo barulhinho. Barulho este que adorava ouvir.
Desde a sua morte, o momento do café da manhã tem sido o mais difícil do dia. Hoje, ao me deparar com a falta da maçã que não tive mais coragem de comer nem de comprar, fui transportada em pensamento, para as obras de Paul Cèzanne.
Pintor francês, pós-impressionista, nascido em Aix-en-Provence em 1839 e falecido na mesma cidade aos 67 anos, Cèzanne foi, sem dúvida alguma, o pai da arte moderna. Retratou, magnificamente, diversas naturezas-mortas com maçãs. As mesmas maçãs apreciadas pela velha Nina, foram pintadas com estranha beleza pelo artista que desiquilibrava a composição da mesma maneira que a morte da minha companheira desequilibrou os meus dias.
Na sua obra “A cesta de maçãs” pintada em 1893, o lado direito da mesa não está no mesmo plano do lado esquerdo. A garrafa é inclinada e a perspectiva é toda distorcida.
No meio do que parece causar estranheza, a harmonia surge inesperadamente. Cèzanne pensava os temas como uma construção que precisava ser elaborada independente da realidade mostrada.
Suas maçãs eram vivas e pinceladas com expressão e vitalidade através de cores fortes que se destacavam no pano branco jogado à mesa.
Com o coração doído de saudades desta velhinha muito velhinha que, com sua velhice, deu um sentido de maior amor aos meus dias, percebo semelhanças desta minha rotina vazia com a obra de Cèzanne, cujo desequilíbrio das formas e a distorção da perspectiva dão o tom à composição.
Como fazer a vida ganhar concordância em meio a tanta desarmonia?
Como conviver com a morte de quem acrescentava afeto aos nossos dias?
E o coração de Jeremias que viu sua amada partir, assim de repente? E os velhos dos residenciais que percebem a morte por ali rondando todos os dias? Sim! A morte é certa mas preferimos deixá-la de lado do que aceitá-la como companheira natural, afinal, para que falar disso? Deus me livre! Falar de morte dá azar! Vamos mudar de assunto!
Nina era uma velhinha muito velhinha e eu sabia que sua morte estava próxima. Mesmo assim não estava preparada. E Seu Jeremias que, casado há tanto tempo, não tem mais forças para continuar a vida com a solidão como companheira?
Pouco importa a quem a morte nos impôs a separação. Cachorro? Esposa? Irmão? A dor é pelo amor que sentimos, afinal é este sentimento que dá sentido às relações.
Minha Nina era uma cachorra cujo amor transcende a sua pequenez física. Um amor tão potente e verdadeiro que meu coração percebe sua eterna presença.
Com as desestruturas instaladas, a vida precisa seguir adiante num contraponto que deve ser pensado e criado por quem vive a desordem causada pela morte. Era isso que Cèzanne soube fazer tão bem! Mas, e nós? Somos artistas de nós mesmos ou não? Quando vamos aprender a olhar a morte com a naturalidade da vida?
Em cada maçã criada por Cèzanne, em cada transformação que o amor suscita.
Jeremias precisa vestir a vida ao acordar assim como os idosos dos residenciais precisam aquietar o coração que se aflige com a proximidade do fim.
A saudade machuca enquanto a grandeza do que foi sentido nos ensina a prosseguir.
Não é fácil mas temos o amor vivido que nos fortalece. A composição do viver deve ser construída assim como Cèzanne o fez.
Amanhã, para o café da manhã, comprarei maçãs e ao comê-las, escutarei o barulhinho que me levará até você.
Em pensamento, minha ponte começa a ser construída.
Entre uma lágrima e outra, a vida segue.