No ano que se passou fiquei grata ao meu pai por suas providências ao se preparar e à sua família para o tipo de morte que desejava. Foi um desafio resistir ao tratamento médico que eu conhecia muito bem. Mas, em respeito a seus desejos, nós mudamos nosso foco de um prolongamento da vida artificial e tecnológico para uma experiência comunitária enriquecedora. Conseguimos, assim, seguir os princípios propostos no século XV para alcançar um resultado atemporal; uma boa morte.
Katherine C. MacKenzie, M.D. Tradução de Vera Brandão *
Em uma segunda feira à tarde, na primavera de 2015, minha irmã telefonou para dizer que Rocky, um vizinho de papai, tinha acabado de fazer contato com ela, e disse “papai está vivo, mas não consegue falar ou movimentar o lado direito. Rocky o encontrou caído no chão da cozinha. A ambulância está a caminho”.
Decisões sobre sua saúde se impuseram e nos quatro dias seguintes oscilei entre os papéis de filha, cuidadora e médica. Foi desorientador, difícil…e transformador. Depois de 20 anos cuidando de pacientes como clínica geral, eu estava exercendo a profissão entre os membros da minha família. Eu não queria que ele sofresse, e desejava que ele tivesse uma boa morte – algo parecido com a ars moriendi, termo latino que pode ser traduzido por “arte de morrer”.
Este conjunto de escritos teve origem na Europa durante o século XV, na esteira da peste bubônica, e seu objetivo era fornecer um quadro prático e espiritual na preparação para a morte, esboçando orações e protocolos para os moribundos e suas comunidades, enfatizando a necessidade de conhecimento sobre a finitude humana.
Meu pai nunca tinha ouvido falar sobre a ars moriendi, mas eu estava certa que seria o que desejava. Em seu testamento vital, e em conversas familiares, ele tinha sido claro que não queria ventilação mecânica, tubos de alimentação e ressuscitação e gostaria, se possível, morrer na fazenda. Ele se tornara gravemente doente há um ano, mas recusou deixar sua casa e procurar cuidados.
Ele se recuperou da doença, mas agora estava claro que ele aceitava cuidados médicos apenas para o alívio dos sintomas, e não queria tratamentos para uma doença fatal. O declínio físico devido à artrite e gota era evidente, e seus pés incharam impossibilitando que usasse as botas, fazendo com que tivesse que usar tenis no último ano de sua vida. A imagem de Bob Mackenzie sem suas botas de cowboy era desconcertante. Quando cheguei ao hospital, 14 horas depois do chamado de minha irmã, papai estava inconsciente, e quando apertei sua mão ele não respondeu e seus olhos permaneceram fechados.
O médico disse que ele tinha sofrido um grave acidente vascular cerebral, e precisava de 24 horas para um prognóstico, e era improvável que voltasse a ter o mesmo grau de independência. Hospital, cuidados médicos, intervenções – meu pai não gostaria de nada disto se estivesse consciente. Eu assumi a responsabilidade pelos cuidados de saúde e iniciei a tarefa de, intensivamente, manter apenas o conforto, embora fosse uma doença potencialmente tratável.
Conseguimos uma ambulância para levá-lo de volta para a fazenda tão logo possível “Vamos deixar o hospital papai e voltar para a fazenda agora”.
O ar da primavera era quente quando chegamos em casa que cheirava a couro, poeira e tabaco. Sua respiração tornou-se mais regular e sua agitação diminuiu. Acredito que ele sabia que estava em casa, mas tirá-lo do hospital provavelmente apressou sua morte. Mas os dias restantes foram ricos – e de acordo com seus desejos.
A casa ficou cheia das vozes familiares e amigas, que ressoavam dentro e fora de seu quarto, e exprimiam seu respeito com palavras e gestos calmos, mas com humor e sorrisos também. O pároco Padre Herman realizou os últimos rituais, e uma vigília de contemplação e conforto o envolveu por 3 dias.
No livro Dying in the Twenty-First Century, Lydia Dugdale pergunta se poderíamos reviver a ars moriendi, apesar da nossa abordagem altamente medicalizada da morte. Olhando para meu pai, livre da tecnologia médica, achei que estávamos mais próximos. Não havia equipe médica e máquinas para mantê-lo vivo, mas somente o cheiro das planícies, o conforto de sua própria cama, e as vozes de quem ele amava.
Às vezes eu me perguntava se tinha tomado a decisão certa, pois a medicina moderna tornou possível a sobrevida de pacientes que sofrem acidente vascular cerebral, apesar das significativas perdas daí resultantes.
Em seu segundo dia em casa, papai começou a tossir e ficou febril e suspeitei que fosse pneumonia. Como médica eu sabia que um antibiótico seria apropriado, com baixo risco, mas optamos por não administrá-lo.
Ele recebeu medicação para aliviar seu desconforto e isto foi tudo. Apesar de seus desejos já manifestos eu sabia o que seria possível fazer para mantê-lo vivo. Quase ao final de nossa vigília, minhas irmãs, sobrinhas e eu estávamos emocionalmente exaustas. Quando nos sentamos com uma vizinha na sala, ao lado do quarto de papai, ela perguntou sobre o piano que lá estava e disse que tocava, e perguntamos “Poderia tocar para nós?”.
Em seguida, uma música melancólica e plangente nos envolveu calmamente, e nos sentimos preparadas para dizer adeus ao nosso pai. Suas condições continuaram a deteriorar, e na quinta feira pela manhã minha irmã disse “Papai, está uma linda manhã, e não há problema em ir agora”. Pouco depois sua respiração mudou, diminuiu e então parou. Seguramos suas mãos entre as nossas sentindo profunda tristeza e reverência pela morte.
Nota da tradutora
Ars moriendi é um termo latino que se traduz por “arte de morrer”, um tema comum a livros de devoção destinados ao preparo de cristãos para uma boa morte. Esses escritos surgiram no início do século V, em diversas formas e versões, permanecendo populares até o ano de 1700. A estrutura básica e conteúdo dessas obras permaneceram as mesmas até o século VI, quando influências do humanismo, protestantismo e contrarreforma levou a algumas inovações. A principal suposição dos textos iniciais era de que o destino eterno de uma pessoa era decidido no momento de sua morte (salus hominis in fini consistit). O propósito do tratado era auxiliar a pessoa em leito de morte a escapar do inferno ou do purgatório através de uma penitência genuína. Os textos mais significantes são Opus tripartitum de praeceptis decalogi, de confessione et de arte moriendi de Jean Gerson (1363-1429) e Tractatus ou Speculum artis bene moriendi de Nicolas de Dinkelsbühl (1414-1418):https://pt.wikipedia.org/wiki/Ars_Moriendi. Acesso em 08/07/2016.
Leia mais
Livros
Hennezel, Marie e Leloup (2012). Jean-Yves. A Arte de Morrer. São Paulo: Editora Vozes.
Dugdale, LS. (2015). Dying in the Twenty-First Century: toward a new ethical frame-work for the art of dying well. Cambrige, Ma: MIT Press.
Artigos
a) Percepciones de estudiantes y médicos sobre la “muerte digna”. Morais; Nunes; Cavalcanti; Soares; Gouveia. Rev. bioét. (Impr). 2016; 24 (1): 108-17. Disponível Aqui. Acesso 04/07/2016.
b) Desenvolvimento da Tanatologia: estudos sobre a morte e o morrer. Maria Julia Kovács. Paidéia (Ribeirão Preto), v.18, n.41, p.457-468, 2008. Disponível Aqui. Biblioteca Digital da Produção Intelectual – BDPI, Universidade de São Paulo. Acesso 08/07/2016.
* Katherine C. MacKenzie escreveu este relato para The New England Journal of Medicine. Vol. 374, nº 22. June 2, 2016 (edição impressa), pp. 2107-2109. Tradução e Notas por Vera Brandão – Doutora em Ciências Sociais – Antropologia PUC/SP. Pós-doutorado em Gerontologia Social PUC/SP. Pesquisadora do Núcleo de Estudo e Pesquisa do Envelhecimento – NEPE – do Programa de Estudos Pós Graduados em Gerontologia PUC/SP. Editora da Revista Portal de Divulgação. E-mail: veratordinobrandao@hotmail.com