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Minhas duas mortes provisórias

caverna escura e homem caminhando

Já morri duas vezes, não pela medicina… Chamo esses episódios de mortes provisórias.


O título pode parecer espalhafatoso, mas é verdade: já morri duas vezes. Mortes provisórias, claro. Não aquela morte definida pela medicina. Nem morte encefálica, nem morte cardiopulmonar. Mas o coração parou por alguns segundos, quantos não sei. Por isso chamo os episódios de mortes provisórias. E aconteceram duas vezes.

Viver não é uma escolha:
é uma chance.
Então, aproveite-a.

A primeira vez foi em janeiro de 2016 e a segunda em fevereiro de 2024. Portanto, com oito anos de diferença entre os dois. O que aconteceu, de fato? Eu tive, nessas duas datas, uma taquicardia supraventricular (TSV). Explicarei de que se trata isso, pode ser de interesse a alguém, principalmente de uma pessoa idosa, por ser um episódio clínico não muito raro. Aproximadamente um porcento da população teve ou terá uma TSV pelo menos uma vez na vida. Eu já tive duas.

Coração disparado, ecodoppler diz – não é nada.
Cateterismo ecoa: artéria vazia.
Cintilografia, qualquer coisa à toa: alma apaixonada? 
Não, é taquicardia. Apenas uma arritmia.

Na primeira vez estava eu em Palmas (TO), para uma visita a filha, genro e netos. Cidade quente, mas plana e com um belíssimo parque onde moradores e visitantes gostam de se exercitar, a dois mil e quinhentos metros da casa de minha filha, boa distância para uma corrida curta e acelerada. Lá fui eu movimentar meus músculos. No trajeto de volta uma chuva tem início e retomei a corrida, em passos mais largos.

Em dado momento senti uma dor no peito, vertigem, pernas bambas. Pensei ter passado por uma queda de pressão arterial (já acontecera antes, embora sem dor) e voltei caminhando devagar até a casa. Minha filha, médica, tentou medir, sem sucesso, minha pressão arterial e batimento cardíaco. Sacou logo o acontecido e telefonou para um cardiologista seu conhecido (vantagem de ter médicos na família e por perto na hora necessária).

Conduzido imediatamente ao hospital e recebido por um cardiologista e uma equipe de enfermeiro(a)s e técnico(a)s de enfermagem, censores alocados pelo corpo, vieram as primeiras medidas: pressão arterial a 220 x150 e batimento cardíaco a 220 bpm. E vivo, bem vivo, sem dores e acompanhando todos os procedimentos.

— Você tem uma “via anômala” no coração. Um caminho alternativo que não deveria ter. O comando eletromagnético que vem do cérebro, e deveria se transformar em comando hidráulico no ventrículo, passa por esta “via anômala”. O coração entende que deve bombear o sangue no limite.

— Como surgiu essa “via anômala”?

— Não surgiu, é congênita. Você a tem desde que nasceu.

— E por que isso só acontece agora, aos sessenta e três anos?

— Sorte, saúde, bom preparo físico.

Uma super dose de adenosina na veia, o coração reseta, ou seja, para literalmente por alguns segundos e começa a funcionar em modo normal de novo. Um verdadeiro Ctrl Del cardíaco. Por incrível que pareça, olhei para os medidores atrás de meu corpo e vi a pressão arterial e os batimentos cardíacos voltarem ao normal imediatamente. Já o tamanho do risco eu medi pelos olhos arregalados de minha filha e de meu genro, ambos médicos.

Taquicardia supraventricular

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As causas da taquicardia supraventricular (TSV) podem ser divididas em dois grupos principais:

1. Anormalidades congênitas:

Vias acessórias: São vias elétricas anormais que podem conectar as câmaras superiores (átrios) às câmaras inferiores (ventrículos) do coração. Essas vias podem permitir que os impulsos elétricos circulem em um circuito anormal, causando a TSV.

2. Fatores adquiridos:

Doenças cardíacas, Hipertensão, Doenças pulmonares, Medicamentos (alguns medicamentos, como antidepressivos e estimulantes, podem causar TSV), Cafeína em excesso, Consumo excessivo de Álcool, Estresse e uso de Drogas ilícitas. Em alguns casos, a causa da TSV pode ser desconhecida(1). 

Como não me enquadro em nenhum dos casos dados como “Fatores Adquiridos”, a conclusão do cardiologista foi óbvia: “vias acessórias anômalas”. Ou seja, um cisne negro. Segundo o economista e escritor Nassim Nicholas Taleb, autor do livro “A Lógica do Cisne Negro”, ninguém acredita na existência do cisne negro até que, um belo dia, o avista. E, se ele aparece uma vez, pode aparecer de novo. Foi o que aconteceu.

Segundo Nassim NicholasTaleb, o cisne negro é um evento imprevisível e impactante cuja natureza extraordinária está na base de quase tudo que acontece no mundo, inclusive em nossa vida pessoal.

Você, cara pessoa idosa, quantos cisnes negros acredita que já viu na vida?

Vi o tal “cisne negro” pela segunda vez no domingo de carnaval, pouco depois das 12h, quando assistia ao desfile de um bloco de rua. O calor era enorme, mais de quarenta graus no chão e em meio a centenas de foliões. Eu apenas observava, bebia muita água, levada em um cantil de caminhante. De repente veio aquele estremecimento. Levei as mãos à minha jugular e não consegui sentir minha pulsação. Meu instinto me avisou a presença do “cisne negro”: uma TSV em curso. Estava só, sem telefone, nenhuma pessoa conhecida por perto, o jeito era tentar chegar até um policial ou até uma ambulância que eu vira a uns quinhentos metros de distância. Felizmente, encontrei um táxi, que me conduziu ao hospital. De novo, 220 batimentos por minuto, mas a pressão arterial estava normal. Mais uma vez o choque de adenosina na veia resetou meu coração e, durante alguns segundos, tive minha parada cardíaca, ou seja, minha segunda morte provisória.

A TSV não é um episódio inerente à idade avançada. Acontece com qualquer um, independente de geração. No entanto, a questão que fica é: se começo a ter episódios como esse a esta altura da vida, mais de setenta anos, o que me espera? Como proceder se não há previsão antecipada dos acontecimentos? Sem mais nem menos, uma pessoa absolutamente normal em termos de saúde, avista esse “cisne negro”. O que fazer com a tal “via acessória anômala” se não há medicação adequada para preveni-la? Um procedimento viável chama-se ablação, ou seja, uma cauterização da tal via, por meio de um cateterismo. Um procedimento caro, dificilmente financiado pelo SUS e pelos planos de saúde e com sucesso não garantido.

Quantas mortes provisórias ainda terei?

Nos dois casos eu me encontrava perto de um hospital e tive atendimento emergencial muito rápido. Mesmo assim, se passaram mais de duas horas entre a percepção do acontecido e o procedimento médico bem sucedido. Duas horas com o coração batendo mais de duzentas vezes por minuto, uma verdadeira maratona de um corredor despreparado para isso. O cansaço em seguida custou-me uns três dias de repouso até o coração voltar aos meus tradicionais sessenta por minuto. Darei conta de ter uma criação de “cisnes negros”?

A poesia existe
para nos fazer eternos:
enfrentar o mistério da morte
compreender o trágico da vida.
Registros de humanidades.

Nota
(1) informações buscadas através do endereço (Inteligência Artificial): https://gemini.google.com/app/0b927907dbf337ee


Paulo Cezar S Ventura

Graduado (UFMG) e Mestre (USP) em Física, e Doutor em Ciências da Comunicação e da Informação, pela Université de Bougogne, em Dijon, França. Exerceu a profissão de professor, no CEFET-MG, onde dirigiu o LACTEA – Laboratório Aberto de Ciência, Tecnologia, Educação e Arte. Hoje se dedica à literatura e se identifica como poeta, cronista, contista e editor da Rolimã Editora Ltda. Autor de diversos livros. Participa do Movimento Vidas Idosas Importam e é membro da Academia Novalimense de Letras. pcventura@gmail.com - @paulocezarsventura

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