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Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível

Memória. Conceito tão ligado à história, que se confunde com ela e, ao mesmo tempo, cria-se a partir dela; para alguns, a antecede. As relações entre memória e história, e o conjunto de atos individuais e coletivos que lhes dão materialidade e espessura política, delimitam um amplo espectro de abordagens historiográficas. Contudo, tais abordagens dependem de um refinamento teórico e metodológico dos significados que esses dois conceitos podem assumir. O desafio que essa tarefa representa liga o conjunto de textos presentes na coletânea Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Nessa obra, historiadores, filósofos, literatos e cientistas sociais discutem os usos da memória e tratam dos ressentimentos que a acompanham.

 

 

Pensadas como ferramentas analíticas, as noções de memória e história são articuladas para dar conta dos processos sociais relativos à interpretação do passado, à construção de biografias, à reflexão sobre o lugar da disciplina a que chamamos de História nas ciências humanas, à construção de identidades e à compreensão dos movimentos nacionalistas e fundamentalistas que marcaram o início do século XX, com toda sua força e violência expressas nas guerras, na exclusão social, no genocídio,e hoje, mais comumente, nos atos de terrorismo.

A todo esse universo de objetos de pesquisa se junta a idéia de ressentimento, peça fundamental que alicerça toda a linha argumentativa da coletânea. O significado de ressentimento adotado é aquele referente ao sentido negativo que esta palavra assume, ou seja, tem a ver com mágoa, pesar e dor. Uma dor do passado que dá sentido político à construção voluntária de memórias, ou de seu próprio esquecimento, para a efetivação de demandas sociais e constituição de subjetividades.

Memória e (res)sentimento surgiu do colóquio internacional realizado nos meses de maio e junho de 2000, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, reunindo, em sua maioria, pesquisadores desta universidade e da Universidade de Paris I. Naquela época, o país acabava de viver o que Jacy Alves de Seixas, uma das articuladoras do livro, chamou de obsessão comemorativa, com a festas dos 500 anos do “Descobrimento”. Para ela, tais tipos de comemoração são um fenômeno que tomou conta das sociedades contemporâneas nas últimas décadas do século XX. No Brasil, no entanto, houve um aparente paradoxo. País carente de comemorações, e tido como “sem memória”, colocou à margem das comemorações de uma história oficial a memória dos excluídos, dos índios, negros, trabalhadores e estudantes.

Trazendo ao público vinte e cinco textos divididos em duas partes, uma tratando basicamente das relações entre memória e história e outra sobre os ressentimentos, o livro oferece ao leitor uma vasta gama de assuntos, passando pelos clássicos da literatura, da filosofia e das ciências humanas. De Tucídides a Foucault, passando também por Nietzsche, Bergson, Proust, Benjamin e Wittgenstein, entre outros, tem-se à disposição um mapa sobre as questões que rodam a problemática da memória na historiografia contemporânea. De um lado, há a preocupação com os processos históricos vistos a partir de uma perspectiva ampla, de outro, procura-se compreender o que há de subjacente nas transformações sociais, ou seja, quais são as afetividades, o foro íntimo daqueles que as produzem ou são submetidos aos seus efeitos.

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Tais questões são logo apontadas nos textos de apresentação de Memória e (res)sentimento, que dão impulso para o desenvolvimento das partes seguintes da obra. Em “Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais”, Jacy Alves de Seixas, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), analisa a crescente revalorização da memória e o seudireito e dever reivindicados por diferentes grupos sociais e políticos. Para a autora, na historiografia, esse movimento tem convivido com uma ordem inversa, que é a falta de reflexão sobre o fenômeno.

Em seu texto, Seixas concebe a memória como ferramenta analítica e, dentre os vários usos que se pode fazer dela e de suas relações com a história, a questiona como um instrumento político e como elemento amalgamador de identidades e de relações sociais. É algo que, unindo passado e presente, move as ações sociais positivamente em busca de um fim, de sua realização no futuro (nesse sentido, leia na ComCiência: “Dia da Consciência Negra” retrata disputa pela memória histórica).

Em outro texto de apresentação, “História e Memória dos Ressentimentos”, de Pierre Ansart, da Universidade de Paris VII, a problematização da historiografia contemporânea é feita a partir da perspectiva do ressentimento. Para o autor francês , os rancores, as invejas, os desejos de vingança e os fantasmas da morte são os sentimentos que melhor definem a palavra ressentimento. Em seu texto, o conceito é esmiuçado a partir das definições que assume nas obras de Nietzsche, Max Scheler, Robert Merton e Freud, segundo suas relações com as noções de história e memória.

Mas, como adverte Ansart, o ressentimento não é só um conjunto de valores, é algo mais do que isso. Pensado como ferramenta analítica, o ressentimento faz parte de um sistema teórico que procura compreender as forças de oposição presentes nos diversos tipos de relações interiorizados nos indivíduos e em seus grupos: a dominação, a subordinação e a insubordinação que acompanham as revoltas políticas e sociais, aquelas que fazem história e memória. O ressentimento, desse modo, é tratado como um impulso à transformação das realidades. Toca uma questão sensível para a compreensão das relações entre os afetos e o político, entre a sociedade e o Estado.

Alexandre Zarias

Fonte: Disponível Aqui

Título: Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível
Autor: Stella Bresciani e Márcia Naxara
Editora: Editora da UNICAMP
Cidade: Campinas
Ano: 2001

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