Ao ler as matérias sobre Sérgio Jaguaribe, o irreverente cartunista, o popular Jaguar e o sempre charmoso Ziraldo, confesso que senti uma pontinha de melancolia, uma saudade de tempos passados, do politicamente incorreto, das piadas ácidas e de alguns tipos de homens que pouco se vê nos dias de hoje.
Luciana H. Mussi
Jaguar acaba de completar 80 anos com uma notícia nada boa: “ao fim de seis décadas tendo bebido o equivalente a ‘uma piscina olímpica’ de álcool, seu fígado sucumbira à uma cirrose avançada, acompanhada de câncer”.
“Eu tinha tanto orgulho do meu fígado, me senti hepaticamente corneado”, diz o cartunista, tão célebre pelo humor implacável quanto por sua paixão por um boteco e um trago.
Em entrevista concedida ao Jornal Folha de S.Paulo, Jaguar falou dos amigos falecidos este ano, companheiros de ‘O Pasquim’ (Millôr Fernandes e Ivan Lessa), da vida, dos planos e do trabalho.
Folha – Como está sua saúde?
Jaguar – Em vez de morrer até o fim do mês, talvez eu tenha mais uns seis meses (risos). Eu estou com cirrose e mais uns três ou quatro tumores foram extirpados. Fiz um exame na semana passada que mostrou que eu estou como o Brasil: parado. Não melhorou nem piorou.
A notícia pegou todo mundo de surpresa, não?
Inclusive eu. Andei fraco, me sentindo pesado, e meu médico me mandou ir a São Paulo fazer exames. Tudo apoiado por minha mulher, que é médica. Foi a maior burrice que já fiz. Eu não saberia até hoje que estava doente, estaria tomando minha birita. Eu fui ao Sírio Libanês, me enfiaram naquele canudo que faz uns barulhos estranhíssimos, você tem de ficar imóvel. Esse exame exige nervos de aço, depois dele você pode ouvir o relator do mensalão por 12 horas seguidas sem mostrar sinais de tédio.
Como vai a vida sem álcool?
Estou fazendo experiências, drinques para abstêmios. Faço um Bloody Mary com o suco de tomate temperado com tabasco, limão, pimenta em pó. E cerveja sem álcool. Porque, ao contrário de muita gente, eu gosto da cerveja pelo sabor. Para ficar de porre, eu tomava coisas mais expressivas.
Foi uma adaptação difícil?
Como dizia Dostoiévski, e o Zé Keti também, o homem se acostuma com tudo. Eu bebia porque gostava de ficar bêbado. O grande problema é que eu posso beber o quanto quiser que não fico bêbado. Fiz uns cálculos: a quantidade de cerveja que bebi nos últimos 50 anos dá para encher um carro-pipa. Bebi quase uma piscina olímpica. Entre cinco e dez cervejas por dia. Fora Steinhäger, cachaça, tudo que você pode imaginar. Eu me sinto corneado pelo meu fígado. Eu tinha um orgulho dele, rapaz. Eu não tenho sinais de cirrose, mas a redundância magnética [risos] me entregou. Eu sou o pé na cova com o aspecto mais saudável que eu conheço.
Ainda bem. Neste ano já perdemos outros do “Pasquim”.
Este ano foi bravo para o humor. Foi-se o Millôr, foi-se o Ivan Lessa. Ao Ziraldo, quando me convidou para os 80 anos dele, eu disse que ia estar no Sírio Libanês. Aliás, queria deixar registrado: a melhor empadinha de frango do Brasil é na lanchonete de lá. Recomendo vivamente. A hotelaria do Sírio é um negócio fantástico, você morre muito bem (risos). Em suma, não sei quanto tenho de vida, mas é mais do que esperava. Sempre disse que quero ser cremado, mas não tenho essa coisa poética de querer que minhas cinzas sejam espargidas no mar ou debaixo de um carvalho que meu avô plantou. Não, pega as cinzas, joga no vaso sanitário e puxa a descarga. Morreu, acabou.
Como andam suas relações com o Ziraldo?
É quase um casamento, somos amigos há 60 anos, já brigamos uma porrada de vezes. Agora estamos amigos, ele está curtindo meu câncer à beça (risos). Mas somos completamente diferentes, inclusive nesse negócio de aniversário. Ele transformou os 80 dele num evento e ficou chateado de eu não ir. Ele falou: “Você vai ser a pessoa mais importante da festa. Todo mundo vai perguntar, ‘cadê o Jaguar?'”.
E como é sua rotina de trabalho atualmente?
Eu trabalho no máximo até as 11h, e o mínimo possível. Faço só o estritamente necessário: uma charge às segundas, uma às quintas, uma piada sobre botecos para o “Boteco do Jaguar”. Agora que estou proibido de beber, vou fazer um livro sobre coquetéis, com historinhas e uma seleção desses desenhos que eu faço e que saem num suplemento de “O Dia”. Eu estava pensando em escrever uma autobiografia, mas o Ruy Castro me disse: “Não, eu vou escrever, já está tudo na minha cabeça”. Minha autobiografia escrita por ele vai ficar muito melhor.
Desenhar é algo que consome muito tempo para você?
Não. Desenho rápido, não faço esboço. E não sei desenhar. Aqui no Brasil, qualquer pessoa que faz alguma coisa por mais de dez anos, mesmo não sabendo, é considerada boa. Quando mostrei meus desenhos pela primeira vez ao Millôr, ele falou: “Pô, o seu desenho é péssimo”.
Ziraldo, um menino/velho maluquinho
Outro dos grandes é Ziraldo, o “ainda” eterno menino/velho maluquinho. Aos 80 anos recém-completados, o escritor acumulou quase uma centena de livros publicados, filmes baseados em suas obras, e mais um incontável número de desenhos feitos para revistas, jornais, peças publicitárias, camisetas, e cartazes.
Em entrevista ao G1, Ziraldo comenta com a irreverência de sempre a vida vivida após oito décadas. Fala sobre o envelhecer, critica a escritora francesa Simone de Beauvoir e confessa que o medo maior é a morte.
Abaixo, trechos da entrevista
G1 – Como é ter 80 anos? Quando novo, chegou a se imaginar nessa idade?
Ziraldo – Não. Eu tenho falado com minha turma, pessoal de 80 anos, a gente não fazia planos. A gente chega aos 80 anos com o mesmo susto que a gente chega ao Natal. Em janeiro você começa o ano, em outubro você vê o primeiro Papai Noel e pensa: “meu Deus, já é Natal?”. Parece que foi uma coisa que aconteceu de repente. Agora, no meu caso, quando eu vivia o século 20, eu sonhava em chegar ao século 21. Como eu fui leitor de história em quadrinhos, eu achava o século 21 uma coisa misteriosa, impenetrável. Mas quando eu lembrava que teria 68 anos na entrada do século 21, eu pensava: “qual a graça de chegar ao século 21 com 68 anos?” Acho que ninguém faz plano pra mais de 60 anos. E aí cheguei ao século 21 e não mudou nada. Sou igualzinho. Descobri hoje uma frase antológica: “A natureza seria realmente sábia, se a cabeça do homem envelhecesse junto com o corpo. Isso é o que deveria acontecer”.
G1 – Neste mundo ideal você acha que viveria mais quantos anos?
Ziraldo – Meu corpo tem 80 anos, e minha cabeça… Sei lá, não tem idade. Eu não mudei nada. Continuo sentado na mesma prancheta, trabalhando do mesmo jeito, com a mesma intensidade. Me relacionando com as pessoas, com filhos, amigos, do mesmo jeito. Minha turma de infância e profissionais estão todos inteiros. Eu converso com eles e nenhum está preocupado se tem 80 anos. E outra coisa: a gente não conversa sobre velhice, não.
G1 – Por que não?
Ziraldo – Tem uma coisa muito engraçada. Eu achava, quando via um velho, ancião de 80 anos dando gargalhada, eu dizia: “poxa, mas tá rindo, será que ele não tá vendo que a morte está tão próxima? Como é que faz vivendo tão próximo da morte?”. A gente perde completamente o medo da morte. Só existe um medo no mundo, que é o medo da morte.
G1 – Se você perdeu o medo da morte, então não lhe restou mais nenhum?
Ziraldo – Não, mais nenhum. Não tenho medo de nada, nem do ridículo. Todos os medos são fatos que podem te levar a morte. Então o medo é da morte. E a gente perde um pouco esse medo. Eu acho o seguinte: A Lea Maria [Aarão Reis] escreveu um livro chamado “Os novos velhos”. Ninguém pode escrever sobre velhice sem entrar nela. Tudo é especulação. A Simone de Beauvoir escreveu um livro sobre a velhice desastroso. Horrível. Ela trata a velhice como se fosse doença. Mas ela escreveu o livro com 60 anos, ninguém é velho aos 60. Ela chega a dizer no livro dela que elogiar a velhice é uma indecência. A rapaziada de 80 anos, ninguém está falando de nostalgia. É vida que segue. Como diria Neruda, “confesso que vivi.” É preciso viver com muita intensidade para não ficar com conversa boboca.
G1 – Você é um homem conservado. É vaidoso? Acha que aparenta a idade que tem?
Ziraldo – Conservado é a puta que te pariu. Mas menina, eu era muito bonitinho e nem sabia. Mas continuo com os mesmos gestos. Estou arrastando um pouco o pé. Sabe que quando eu chego no aeroporto, e vou andar até chegar ao estacionamento, todo mundo fica olhando. Eu comentei com o Zuenir (Ventura) que outro dia eu tropecei no taco. Então, quando chego ao aeroporto e vejo todo mundo me olhando, dou uma parada e encho o peito e ataco de John Travolta. Chego morto de cansaço no táxi, mas o cara que me vê fala: “Olha lá, o Ziraldo parece o John Travolta”. Agora não tem mais octogenário, é tudo oitentão.
G1 – E sua rotina?
Ziraldo – Minha vida não muda nunca, nada. Trabalho no mesmo lugar. Por isso que o tempo passa veloz para nós. A diferença entre uma criança e um velho, é que o tempo da criança passa muito depressa, mas os anos passam muito devagar. Você demora uma eternidade para fazer 17. Aí quando você faz 80, os dias custam a passar, mas os anos passam numa velocidade incrível. Não muda nada. Continuo na mesma prancheta, esticando a mão para consultar um livro. Agora eu tenho uma menina que consulta o Google para mim.
Referências
CANÔNICO, M. A. (2012). ‘Fui corneado por meu fígado’, diz Jaguar. Disponível Aqui. Acesso em 10/11/2012.
MACHADO, L. (2012). Ziraldo faz 80 anos e cita frustração: ‘Nunca ter enterrado no basquete’. Disponível Aqui. Acesso em 25/11/2012.