Sobre a morte do amigo Ivan Lessa aos 77 anos, Ricardo Acampora, subeditor da BBC Brasil, escreve: “Sempre temi o dia em que como jornalista teria que escrever sobre um amigo que acabara de morrer. Sabia que esse dia, assim como a inevitabilidade da própria morte, acabaria por vir.
Luciana H. Mussi
Mais do que falar da grande perda desse magnífico escritor e jornalista Ivan Lessa, reflito sobre algo, que, com certeza o homem Lessa tinha como prioridade: o valor da amizade, de um vínculo que não se estabelece pelos laços de sangue, mas sim pelas experiências boas ou más, compartilhadas na tão breve existência.
Todas as perdas, lutos negros que afrontam constantemente, são igualmente difíceis, não há como dizer que “esse” doeu menos ou mais. Mas, como viver sabendo que não teremos mais aquele amigo de todas as horas, todos os cafés, vinhos, refeições e até confissões? Parece que uma parte do que construímos se foi. E assim é viver, as pessoas amadas escapam pelos nossos frágeis dedos e por mais que sejamos fortes, elas se vão deixando vazios, buracos, que sabemos, não serão preenchidos.
Acampora continua escavando o poço das lembranças: “Ivan era papo para qualquer obra. Desde que houvesse um ouvido diligente, cujo dono não tivesse grande vocação ou disposição para a locução. Sempre atualizadíssimo pela internet, que adorava (a quem chamava carinhosamente de ‘Dona Nette’), disparava sua crítica contra tudo e todos com o mesmo furor, sarcasmo e eloquência que usava nas páginas do Pasquim nos anos 70”.
Para os mais jovens que não conheceram o controvertido “Pasquim”, explico: Semanário brasileiro editado entre 1969 e 1991, ficou famoso pela contestação à ditadura militar, tornando-se um dos maiores fenômenos do mercado editorial brasileiro, o porta-voz da indignação social brasileira.
Seguindo os mesmo moldes do humor ácido do Pasquim, escrita impecável, crítica precisa, Lessa era Lessa, como explicar! Ao ler “Subsídios jubilosos” e muitas outras crônicas suas, descobri um alguém sensível e como disse sua esposa, “um homem muito, mas muito inteligente”.
Como defini-lo? O amigo da BBC Brasil, tenta, o descreve inquietante, ferino, implacável, saudoso de um passado que não volta, do tempo da ingenuidade, das emoções que surpreendiam. Não conheci Lessa, mas penso que os tempos atuais, já diziam bem pouco para o homem e profissional.
Sobre ele, mais recuerdos de um amigo: “Pulava de um assunto para outro sempre muito ligado em tudo que rolava, e descia o pau nas tolices que detestava (quase tudo). Ia da música ao cinema, passando por política, esportes, show business, jornalismo, não escapava nada ou ninguém. Dos atuais, gostava de muito poucos. Sua admiração tinha congelado num passado distante. Quer dizer, distante para nós, os ouvintes. Para ele tudo tinha acontecido ontem, ou, na pior das hipóteses, na semana passada”.
O último encontro
Ao ler sobre o último encontro entre Acampora e Lessa, confesso que me bateu uma profunda tristeza. É que chorar a morte do outro, implica sempre em sofrer pelas nossas próprias mazelas, pensar no não vivido, no não-dito: “Puxa, se eu soubesse…teria feito mais, falado mais, beijado mais, tantos “mais” (…). Mas agora, é tarde. O que acalenta o coração? As letras, as palavras, as frases compostas com cuidado, esmero, delicadeza. Sim, nós vamos embora, mas elas ficam.
O amigo chora em silêncio, através, novamente, das palavras: “Na última vez em que estivemos juntos, há cerca de um mês, em sua casa, no bairro londrino de South Kensigton, me contou graças ocorridas na Ipanema de sua juventude, em mesas de pôquer que dividiu com Millôr Fernandes, Samuel Weiner e Antonio Maria, em peladas do Dínamo, time que defendeu no futebol de praia do Posto 6 em Copacabana. Esse era o mundo que amava, esse era o mundo em que teimosa e anacronicamente ainda vivia”.
Millôr, saudade da sua inconfundível irreverência, uma marca: “Todo homem nasce original e morre plágio”.
Já sobre o inesquecível Antonio Maria, Paulo Gracindo e Clara Nunes cantam em 1974: “Antonio Maria se auto definia assim: Antonio Maria Moraes de Araújo. Sinais particulares, cardisplicente, uma mistura de cardíaco com displicente. Nacionalidade, brasileiro. Profissão, esperança”.
É, as lembranças nos levam a lugares que, julgamos, há muito esquecidos. É triste, mas ao mesmo tempo conforta e nos convence que vivemos, de um jeito ou de outro, vivemos.
Londres, um refúgio
Conta o amigo que “o exílio voluntário em Londres de mais de 30 anos ajudou a cristalizar sua lembrança do amado Rio de Janeiro dos anos 50 e 60”. E o retorno foi doloroso: “Só voltou à cidade que adotou uma única vez, em 2006, convidado pelo amigo Mario Sergio Conti a escrever um texto para o primeiro número da revista Piauí. Me disse que doeu ter voltado. Detestou o que viu. Pelas mesmas ruas do centro e zona Sul onde viveu intensamente a liberdade e a tranquilidade do balneário-metrópole-capital nacional, disse que viu um Rio desfigurado, pobre, sujo, feio, sem charme, deselegante, retrógrado, tenso, de trás de grades, preso em seu próprio medo. Não encontrou vestígios do que deixou. Acabaram com o Jangadeiros, não existia mais o Zeppelin, nem a Sucata, só tolices, me disse ele”.
Como resgatar o que se foi? As cores já não tem mais o mesmo brilho, as pessoas mudaram, as ruas contaminadas pela sujeira que polui e o perigo ameaça. Lessa deve ter pensado: onde será que ficou perdido o Rio de Janeiro de outrora? Aquele da juventude agitada, inconformada e pulsante?
Segundo o amigo, Lessa contou emocionado a tristeza que sentiu pela destruição de parte de sua memória, uma afronta, um golpe que o fez nunca mais retornar: “Tentativa de destruição, eu corrijo. Ivan ainda era capaz de ver e viver a mesma praia de Copacabana onde pegou seus primeiros jacarés. Ainda podia saborear um salgadinho da Colombo ou um refresco de coco que era servido em um pequeno bar da Avenida Rio Branco. Descrevia com precisão a vitrine da Casa Sloper, sabia de cor letras de músicas de carnaval dos anos 40, lembrava do nome do lanterninha do Cine Rex. Ainda mantinha o mesmo desprezo pelos militares que tomaram o poder no Brasil e governaram o país por quase 30 anos. Ainda curtia intensamente a Ipanema capital cultural do Brasil, assim como curtia a bossa-nova, as modinhas de carnaval e o chamado samba autêntico”.
Assim Ricardo Acampora, colega de profissão e amigo, termina sua viagem carinhosa, trazendo o amor, a saudade e o que fica de Ivan Lessa: “Talvez por amar o Rio como ele, por ter partilhado inúmeras memórias cariocas com ele, decidi que é esse lado do Ivan Lessa que vou manter na memória para o resto da minha vida, já que acho que a gente, consciente ou inconscientemente, escolhe como consolidar nossa lembrança dos que nos deixam. É assim que vou lembrar sempre dele, como o Ivan Lessa arquivo-ambulante, Ivan Lessa o londrino-carioca, amante de um Rio, que assim como ele, tristemente, não existe mais”.
Importa pensar que o que realmente existe permanece dentro de nós. As coisas seguem seu curso e as pessoas se vão. Costuma dizer o cineasta Orson Welles (1915 – 1985): “Nós nascemos sozinhos, vivemos sozinhos e morremos sozinhos. Somente através do amor e das amizades é que podemos criar a ilusão, durante um momento, de que não estamos sozinhos”.
Ilusão ou não, o bom é saber que amando e com amigos, nunca estaremos sós.
Referências
ACAMPORA, R. (2012). Ivan Lessa: O carioca londrino. Disponível Aqui. Acesso em 09/06/2012.