Pela primeira vez, o mestre sueco Ingmar Bergman (1918 – 2007) nos revela seu mundo na desolada e misteriosa ilha de Farö. Então com 88 anos, pouco tempo antes de sua morte, o diretor revê sua vida e os mais de 60 anos dedicados ao cinema, além da longa trajetória no teatro e na TV, em meio a trechos de seus filmes e raras cenas de bastidores. A Ilha de Bergman é um retrato intimista e fascinante de um dos maiores gênios que o cinema já conheceu.
Na caminhada pela vida e obra do último dos mestres, Ingmar Bergman, encontro “A Ilha de Bergman”, um documentário rodado na Ilha de Farö (uma pequena ilha do Mar Báltico, situada a alguns quilômetros ao norte da Ilha de Gotland na Suécia), local em que o cineasta escolheu para viver os seus últimos anos e lá morrer recluso, num cenário construído por emoções e lembranças. Pela primeira vez, o mestre sueco revela seu mundo na desolada e misteriosa ilha.
Então com 88 anos, pouco tempo antes de sua morte, o diretor revê sua vida e os mais de 60 anos dedicados ao cinema, além da longa trajetória no teatro e na TV, em meio a trechos de seus filmes e raras cenas de bastidores.
Sobre a importância do cinema, no livro “Lanterna Mágica” (1987, p. 78) o mestre explica: “Filme como sonho, filme como música. Nenhuma outra forma de expressão artística é capaz, como o cinema, de vir ao encontro dos nossos sentimentos, penetrar nos recantos mais obscuros de nossa alma”.
Num mar de um azul indescritível, completa o cenário um homem velho, alto, magro, que caminha com vigor, com a ajuda de uma bengala e uma expressão não muito diferente daquela dos tempos de juventude.
Bergman surge diante da câmera e diz: “Os demônios não gostam de ar fresco, eles gostam mais que você fique na cama com medo. Sempre vou dar uma volta após o café da manhã. Depois eu sento, sempre no mesmo horário e escrevo por três horas. Então às três da tarde, vou para a minha sala de cinema. Para uma pessoa tão desorganizada como eu é absolutamente vital ter essas rotinas rígidas”.
E a câmera, quase com vida própria, passeia por todas as belezas de uma natureza idílica, cheia de recantos inexplorados, talvez o mais íntimo e intrigante cenário da sua vida.
A entrevista começa, num clima intimista, apenas Bergman e Marie Nyreröd: uma solene entrega às próprias lembranças, a memória se torna protagonista de um momento mágico do rememorar, à maneira sueca, à maneira dele.
Nyreröd pergunta sobre a vida solitária de um homem outrora tão intenso. Ele responde que Farö não representa a solidão, mas o prazer de estar com ele. É apenas isso – o maravilhoso mundo do silêncio de um Deus sem respostas.
Um silêncio originado no tormento do rigor de uma educação religiosa que girava em torno da culpa e do pecado, percebidos na sua filmografia com os filmes “O Sétimo Selo”, “Morangos Sivestres”, “A Fonte da Donzela” e “Luz de Inverno”, entre outros.
O silêncio de Bergman se revela num cinema que fala na sua mudez, no enigma existencial de vida e morte, em inúmeras perguntas, todas terminadas no vazio. Este homem velho, nesta fase da vida, já consegue conviver com um tipo de silêncio trabalhado, resignado, talvez até entendido por ele como “prazeroso”. Mas para chegar até aqui foi preciso uma longa caminhada.
Seu fascínio pelo tilitar dos relógios com caveiras, padres, duendes, anjos e outras figuras sóbrias, encantadas e enigmáticas, se contrapõe ao silêncio respeitoso de Farö, ao mesmo tempo em que denuncia a passagem dos anos, a consciência de uma finitude implacável, a consciência da morte.
Ao lembrar do pai, Bergman ainda sofre por uma raiva incontida. As surras ocupam um grande espaço nas suas memórias. Mas rememorar permite, também, exorcizar o sofrimento, a dor e a humilhação que fizeram parte de sua formação.
Punição seguida de castigo: seria a implacável morte que o perseguiria para castigá-lo? Deus o salvaria? Que coisas da existência (vida) e não existência (morte-nada) são essas? Que segredos guardam Deus e o Diabo?
Lembranças da infância, experiências, sementes que o levaram ao seu mundo próprio e particular, matéria-prima para a construção desta atmosfera bergmaniana mergulhada em questões da existência, tão presentes em sua obra cinematográfica.
Vasculhando seus “esconderijos”, Bergman encontra o velho cinematógrafo, aquele que entrou para sempre em sua vida, aos oito anos de idade. Ele roda a engenhoca e surge Carlitos fugindo da morte e do diabo. Até o mágico e inocente Carlitos se amedronta com “a maldita”, aquela que não se deve nem falar o nome, vira verdade.
Mergulhado num mundo de sombras, este homem velho mais parece um andarilho. Caminha, na sua velhice particular, através de coisas reais e do incompreensível, parece transitar entre as brumas, rumo a uma outra realidade. Tavez a definição que Leonardo Boff e Frei Betto tenham para “Mistério” no livro “Mística e Espiritualidade” (2010, p. 51) seja a mais adequada para as estranhas experiências vividas por Bergman: “Mistério não equivale a enigma que, decifrado, desaparece. Mistério designa a dimensão de profundidade que se inscreve em cada pessoa, em cada ser e na totalidade da realidade e que possui um caráter definitivamente indecifrável”.
Os autores complementam, afirmando: “Mistério, portanto, não constitui uma realidade que se opõe ao conhecimento. Pertence ao mistério ser conhecido. Mas pertence também ao mistério continuar mistério no conhecimento. Aqui está o paradoxo do mistério. Ele não é o limite da razão. Por mais que conheçamos uma realidade, jamais se esgota nossa capacidade de conhecê-la mais e melhor”.
Sobre o “mistério da vida”, Boff e Frei Betto (2010, p. 53) trazem o ensaio de 1938 de Albert Einstein, “Como vejo o mundo”: “O mistério da vida me causa a mais forte emoção. É este sentimento que sucita a beleza e a verdade, cria a arte e a ciência. Se alguém não conhece esta sensação do mistério ou não pode mais experimentar espanto ou surpresa, já é um morto-vivo e seus olhos cegaram. Aureolada de temor é a realidade secreta do mistério que constitui também a religião”.
A arte de Bergman se fez através da atmosfera angustiante do mistério da existência, da crença e da descrença, da dúvida e do silêncio de Deus que ele, com os anos, aprendeu a entender. A Ilha de Farö lhe proporcionou isto.
Sobre sua vida afetiva, num flagrante do corrosivo tempo, a câmera revela o homem apaixonado, aquele que sempre amou as mulheres, de um jeito viril, fálico e sempre, imensamente, sedutor. Ele conquistava, não pela beleza, mas pela inteligência, criatividade, acidez e dificuldades impostas.
Com a palavra, Bergman: “Eu estive casado cinco vezes, não negarei isso. A maioria dos meus casamentos durou cinco anos. Meu casamento com Ingrid durou 24 anos. Eu me casei ou morei com muitas mulheres. Não tantas, mas todas mulheres maravilhosas e talentosas. Tenho orgulho delas e elas me ensinaram muitas coisas”.
De uma certa maneira, a paixão, sempre fez parte de seu processo criativo, o libertou e, ao mesmo tempo, permitiu que ele convivesse “pacificamente” com seus demônios. Sempre me perguntei, de que lugares viriam a criatividade, ideias e imagens inesgotáveis que se renovavam a cada experiência, a cada gesto inesperado, a cada olhar, a cada revisitar de cenas passadas?
Assistindo e analisando inúmeras vezes os filmes de Bergman, cheguei a minha própria conclusão: ele usava e abusava da sua angústia existencial e as transformava em matéria-prima para a condução de sua vida e obra (separados por uma linha, infinitamente, tênue) e isso, resultava na rica elaboração de um roteiro.
Com as imagens da Ilha de Farö somos invadidos por uma devastadora imensidão, o mar azul, as barcas…o céu nublado, alguns casebres, talvez perdidos ou abandonados. Nyreröd provoca o mestre: “Seus demônios: o que são eles? Como eles são?
Bergman responde: “Na verdade, estou preparado para essa questão. Então anotei os demônios. Alguns deles pelo menos. Fiz uma lista. O pior é o demônio do desastre. A verdade é que tenho um alto estado de preparação para o desastre. Isso significa que você imagina que tudo que faz num dia, que tudo que planeja para os dias seguintes dará extremamente errado. E então tenho um demônio, é ridículo, mas o tive durante toda a minha vida, é o demônio do medo. Na verdade tenho medo de tudo. Não apenas de gatos, cachorros, insetos e pássaros que podem entrar voando na sala se eu deixar a janela aberta. Tenho medo de vários tipos de pessoas. Tenho medo de multidões. Pode-se dizer que sou uma pessoa profundamente medrosa. Então há um demônio difícil de lidar. Se tiver de lhe dar um nome, seria o demônio da raiva. Não sei porque o tenho, mas o herdei de meus pais. Quer dizer que sou uma pessoa irascível, tenho um gênio terrível. Então há um demônio embaraçoso. Estou quase no fim. Há outro, é o demônio do rancor. Tenho uma memória de elefante”.
Ele completa: “E esses são os demônios que não tenho: um poderia ser chamado de demônio do nada, este aparece simplesmente quando minha criatividade ou imaginação me abandona. Quer dizer que as coisas se tornam totalmente silenciosas e vazias e não há nada lá. Mas isso nunca aconteceu comigo o que é algo pelo qual sou profundamente grato”.
E assim, a tela se enche de mar, da inescrutável imensidão azul, pela última vez.
Ingmar Bergman é como alguns dos seus personagens. Pode ser o sofrido velho, Dr. Isac Borg de “Morangos Silvestres”, ou pode ser o marido infiel, Johan de “Cenas de Um Casamento” ou o angustiado cavaleiro de “O Sétimo Selo” e ainda muitos outros personagens que nos encantaram ao longo da vida. A todos eles, Bergman emprestou sua alma, projetou-se e, por que não dizer, estilhaçou-se em cada um, até tornar-se o personagem principal de seus filmes e da vida.
Em janeiro de 2004 Bergman esvaziou seu apartamento em Estocolmo e sua sala no Teatro Dramático Real. Ele decidiu nunca mais deixar Farö.
Ernst Ingmar Bergman morreu em 2007 na sua desejada Ilha de Farö, um ano após a realização deste documentário, numa atmosfera de angústia existencial que fez parte de toda sua vida.
Quando finalizei minha Dissertação de Mestrado sobre Bergman, confesso que até sonhei com ele. Algo, mais ou menos, assim: No momento que eu finalizava a defesa, subitamente, o mestre surgiu. Dançamos, giramos, era como se o tempo, numa fração de segundo, parasse. Como tudo tem um fim, em seguida, eu o acompanhei até o portão (claro, não era o portão da PUC e sim da minha casa, a casa onde nasci). Bergman, emocionado, agradecia a homenagem e se despedia. Pegando carona numa brecha do tempo, ele se foi. Quando me virei, percebi que ele havia deixado um presente para mim: era uma pira (não com o fogo que arde, o fogo dos Deuses), mas com pétalas de rosas vermelhas.
Quando acordei, pensei: é exatamente isso que nos faz viver e amar com tanto ardor, mesmo que nossos amores estejam distantes e sempre nos dando um adeus ou um até breve.
Nascemos com “um olhar de despedida”. A questão é que não nos damos conta disto. É ilusão pensar que a juventude faz as coisas serem permanentes e a velhice nos leva ao “adeus” constante. A cada dia um novo “adeus” e um velho “olá” em movimentos cíclicos do viver e morrer.
Referências
Bergman, I. (1996). Imagens. São Paulo: Martins Fontes.
Bergman, I. (2006). A Ilha de Bergman. [Filme-DVD]. Suécia. Versátil Home Video.
Boff, L.& Frei Beto (2010). Mística e Espiritualidade. Rio de Janeiro: Vozes.