Um “sopro” de felicidade mudara a cidade. Tudo estava magicamente tocado com a notícia. O circo vai chegar! Bailarinas, trapezistas e as peças curtas de sedas coloridas, principalmente.
Alcides Freire Melo *
A cidade mudava de humor. Ouviam-se mais músicas cantaroladas pelas calçadas. Havia um sorriso leve no rosto de cada criança, cada adulto. Desejados bons-dias, logo ao amanhecer, ficaram mais frequentes. Assobios musicais ecoavam na feira, becos e casas. Um “sopro” de felicidade mudara a cidade. Tudo estava magicamente tocado com a notícia. O circo vai chegar! Bailarinas, trapezistas e as peças curtas de sedas coloridas, principalmente. Estas criavam sonhos, fantasias e ódio. Palhaços e mágicos levam as crianças com facilidade à terra dos sonhos da magia, no minúsculo picadeiro.
Na entrada da cidade, com um foguetório próprio, o circo anunciava sua chegada. Cachorros de rua sumiam em disparada, meninos apareciam para o meio da rua e seguiam o comboio. Das janelas brilhavam olhares curiosos, discretos. Decotes graves relaxavam e dividiam com o circo, olhares rápidos, atrevidos e desejosos. Através da fresta da janela azul da casa branca, sombreada de benjamim, vazavam olhares das beatas. As contas dos terços corriam os dedos, rezavam para a imaginação lhes “contar”, em detalhes e segredo, como seria o espetáculo das 20 horas. Provocante! Seriam poucas as roupas; também coladas. Tudo fracamente iluminado por lâmpadas amareladas, com a fraca energia do velho gerador.
O circo estava no chão. Lonas remendadas, costuradas a mão, seriam a empanada lateral do circo. Para os habitantes dos outros planetas e as estrelas assistirem, ficaram “esquecidos” alguns buracos na lona, um dia vermelha, que há anos, pretensiosamente, conseguia cobrir o teto. Abria permissão extra à lua para dar boas “risadas” quando assistia através do maior buraco, o palhaço “Catimbó” cair, mentir e rir por ser palhaço. Madeiras, ferros e tábuas soltas para fazerem as arquibancadas (poleiros) que balançavam frequentemente, ao ritmo das longas gargalhadas. Seria a materialização de longas andanças.
Uma dezena de cadeiras, também de madeira, cordas divisórias, mais uma placa, seria a matéria prima da tribuna de honra. Regalia destinada somente às autoridades, não as religiosas que consideravam esta arte, no interior do mundo, profana e feitora de pecados. O delegado, talvez por necessidade, representava toda a sociedade por trás dos panos de um circo. Mesmo exposto ao “constrangimento”, precisava defender a pureza de todos os pecados.
No início da tarde, começava a limpeza do terreno. A abertura dos buracos no barro vermelho e seco aumentavam os calos das mãos dos artistas. Os meninos precisavam conhecer de perto o nascimento deste teatro. Conhecerem de perto os artistas e virem nascer aquele “gigante” de madeira e tecido que escondia durante o dia o sorriso, as tintas do palhaço. A magia do ilusionista e o corpo musculoso do gigante Verdugo, sempre pronto para quebrar todos os cabos de aço presos aos braços. Não conseguia a pobreza.
Sessenta dias depois o circo acorda calmo, finda mais uma temporada. É o amanhecer de uma segunda-feira. Preguiçosamente o Ford começa a receber de volta a alegria enrolada na lona com buracos. Aumenta o vazio da rua. As horas “roubadas”, os sorrisos divididos, os corações “danificados” pelas pernas, roupas coloridas e dança das bailarinas aguardam, agora, outro circo. Houve, ainda, um “gritador de palhaço” a se arriscar atrevidamente durante a despedida, uma pegada na bailarina mais famosa, a filha do dono. Recebeu em troca um bom tapa na cara. “Mesmo assim, valeu a pena” orgulhava-se Ed, numa conversa onde a maioria por tal motivo daria até a outra face.
A poeira provocada pelos ventos secos, fortes e as altas temperaturas do mês de novembro, tapava as marcas deixadas no terreno do circo. Papeis de bombons, palitos de pirulitos de rapadura eram o lixo que ficaria rodando por dias no bairro das Pedrinhas. Um vidro de Nouveau Cologne 4711, vazio, descuidadamente esquecido, perfumou e sensualizou certamente o corpo da trapezista Verônica, filha do Seu Oscar, o velho palhaço. O frasco da 4711 agora seria um amuleto. Talvez modificasse o tempo, faria um ano com duzentos dias, no máximo, até próximo espetáculo.
Catimbó, o palhaço, de dentro do ônibus misto, acenava com sua nova companheira para a cidade. Por tradição, poderia “roubar” moças para seguirem o circo. Diferente, a bailarina mais nova, “filha do dono”, chorava em silêncio, somente com a alma. Para ela não havia permissão de falar de amor fora da empanada.
* Alcides Freire Melo – Repórter fotográfico e cronista em diferentes periódicos. No Portal colabora com crônicas e fotos. Email: alcidesfreiremelo@gmail.com. Fotos de divulgação do filme “O Palhaço”, de Selton Mello.