Aos poucos, à medida em que se aprofunda o “ajuste fiscal” brasileiro, um velho bordão volta à cena: o do suposto “déficit da Previdência. Nos jornais, “especialistas” brandem números sem se preocupar em explicá-los. Benefícios supostamente “exagerados” teriam tornado o sistema previdenciário inviável. Não haveria outra saída exceto reduzir direitos. Mas uma economista disseca os cálculos que fabricam a “crise” e contra-ataca: objetivo do discurso é transferir à aristocracia financeira fundos que garantem direitos sociais.
Denise Gentil * entrevistada por Coryntho Baldez
a) Para falar de “déficit” da Previdência é preciso realizar uma conta bizarra. Implica excluir da receita do sistema previdenciário tributos que a Constituição destina expressamente a ele: por exemplo, a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), a CSLL (Contribuição sobre o Lucro Líquido) e a CPMF (que deverá ser recriada em breve). Basta incluir estes tributos para que surja, em vez do déficit, um vistoso superávit (RS 1,2 bilhões em 2006, por exemplo).
b) O cálculo artificial esconde um interesse: deixar de ver os benefícios previdenciários (aposentadorias, pensões, assistência aos acidentes de trabalho, seguro-desemprego e tantos outros) como direitos que o Estado deve assegurar, por meio da arrecadação de tributos. Segundo este ponto de vista restritivo, e ao contrário do que diz a própria Constituição, as únicas receitas do sistema previdenciário seriam as contribuições descontadas dos salários da população formalmente empregada.
c) Do ponto de vista da – exceto quando se distorcem os cálculos – destroça os mitos oficiais que encobrem a realidade da Previdência Social no Brasil. Em primeiro lugar, uma gigantesca farsa contábil transforma em déficit o superávit do sistema previdenciário, que atingiu a cifra de R$ 1,2 bilhões em 2006, segundo a economista.
d) O objetivo último é facilmente previsível. Quem alardeia o “déficit” quer, no fundo, desviar para o pagamento de juros recursos que são claramente previdenciários. Em outras palavras, destinar à aristocracia financeira o dinheiro que a Constituição manda usar para os direitos sociais — inclusive dos mais necessitados.
A ideia de crise do sistema previdenciário faz parte do pensamento econômico hegemônico desde as últimas décadas do século passado. Como essa concepção se difundiu e quais as suas origens?
A ideia de falência dos sistemas previdenciários públicos e os ataques às instituições do welfare state (Estado de Bem- Estar Social) tornaram-se dominantes em meados dos anos 1970 e foram reforçadas com a crise econômica dos anos 1980. O pensamento liberal-conservador ganhou terreno no meio político e no meio acadêmico. A questão central para as sociedades ocidentais deixou de ser o desenvolvimento econômico e a distribuição da renda, proporcionados pela intervenção do Estado, para se converter no combate à inflação e na defesa da ampla soberania dos mercados e dos interesses individuais sobre os interesses coletivos. Um sistema de seguridade social que fosse universal, solidário e baseado em princípios redistributivistas conflitava com essa nova visão de mundo. O principal argumento para modificar a arquitetura dos sistemas estatais de proteção social, construídos num período de crescimento do pós-guerra, foi o dos custos crescentes dos sistemas previdenciários, os quais decorreriam, principalmente, de uma dramática trajetória demográfica de envelhecimento da população. A partir de então, um problema que é puramente de origem sócio-econômica foi reduzido a um mero problema demográfico, diante do qual não há solução possível a não ser o corte de direitos, redução do valor dos benefícios e elevação de impostos. Essas idéias foram amplamente difundidas para a periferia do capitalismo e reformas privatizantes foram implantadas em vários países da América Latina.
No Brasil, a concepção de crise financeira da Previdência vem sendo propagada insistentemente há mais de 15 anos. Os dados que você levantou em suas pesquisas contradizem as estatísticas do governo. Primeiramente, explique o artifício contábil que distorce os cálculos oficiais.
Tenho defendido a ideia de que o cálculo do déficit previdenciário não está correto, porque não se baseia nos preceitos da Constituição Federal de 1988, que estabelece o arcabouço jurídico do sistema de Seguridade Social. O cálculo do resultado previdenciário leva em consideração apenas a receita de contribuição ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) que incide sobre a folha de pagamento, diminuindo dessa receita o valor dos benefícios pagos aos trabalhadores. O resultado dá em déficit. Essa, no entanto, é uma equação simplificadora da questão. Há outras fontes de receita da Previdência que não são computadas nesse cálculo, como a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido), a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira) e a receita de concursos de prognósticos. Isso está expressamente garantido no artigo 195 da Constituição e acintosamente não é levado em consideração.
A que números você chegou em sua pesquisa?
Fiz um levantamento da situação financeira do período 1990-2006. De acordo com o fluxo de caixa do INSS, há superávit operacional ao longo de vários anos. Em 2006, para citar o ano mais recente, esse superávit foi de R$ 1,2 bilhões.
O superávit da Seguridade Social, que abrange o conjunto da Saúde, da Assistência Social e da Previdência, é muito maior. Em 2006, o excedente de recursos do orçamento da Seguridade alcançou a cifra de R$ 72,2 bilhões.
Uma parte desses recursos, cerca de R$ 38 bilhões, foi desvinculada da Seguridade para além do limite de 20% permitido pela DRU (Desvinculação das Receitas da União).
Há um grande excedente de recursos no orçamento da Seguridade Social que é desviado para outros gastos. Esse tema é polêmico e tem sido muito debatido ultimamente. Há uma vertente, a mais veiculada na mídia, de interpretação desses dados que ignora a existência de um orçamento da Seguridade Social e trata o orçamento público como uma equação que envolve apenas receita, despesa e superávit primário. Não haveria, assim, a menor diferença se os recursos do superávit vêm do orçamento da Seguridade Social ou de outra fonte qualquer do orçamento.
Interessa apenas o resultado fiscal, isto é, o quanto foi economizado para pagar despesas financeiras com juros e amortização da dívida pública.
Por isso o debate torna-se acirrado. De um lado, estão os que advogam a redução dos gastos financeiros, via redução mais acelerada da taxa de juros, para liberar recursos para a realização do investimento público necessário ao crescimento. Do outro, estão os defensores do corte lento e milimétrico da taxa de juros e de reformas para reduzir gastos com benefícios previdenciários e assistenciais. Na verdade, o que está em debate são as diferentes visões de sociedade, de desenvolvimento econômico e de valores sociais.
Leia a entrevista completa Aqui
Para detalhes, leia também, na íntegra, sua tese Aqui “A falsa crise da Seguridade Social no Brasil: uma análise financeira do período 1990 – 2005”
* Denise Gentil foi entrevistada por Coryntho Baldez, no Jornal da UFRJ