Por vezes não acreditamos na finitude dos corpos. “Irresponsavelmente” acumulamos, não cuidamos, nem tratamos até a cura final, as profundas, indeléveis e eternas marcas deixadas pelas mais desregradas das paixões. Jogamos um pouco de álcool sobre o coração e seguimos, livres, outra vez. Precisaríamos de maturidade, por isso, não saramos. Foram estas, certamente, as condições que condenaram uma fotografia que encontrei jogada ao lixo.
Alcides Freire Melo * Texto e fotos
Por vezes, muitas vezes, não acreditamos – quando jovens ainda -, na finitude dos corpos. “Irresponsavelmente” acumulamos, não cuidamos, nem tratamos até a cura final, as profundas, indeléveis e eternas marcas deixadas pelas mais desregradas das paixões. Jogamos um pouco de álcool sobre o coração e seguimos, livres, outra vez. Precisaríamos de maturidade, por isso, não saramos. Passados todos os efeitos, deixamos escapar delinquentes sentimentos que ardiam e, sem esforço, agora invertiam a lógica de tudo; do tempo e da racionalidade. Traíamos as “certezas” que nos fixavam numa cama; deslocamos a outras pernas, bocas que sussurraram, declararam, negaram e mentiram por medo. Lamentávamos por erros.
Há ainda quem “arrisque”, para eternizar todos estes sentimentos, entregar a vigilância do tempo que passou, o que teima em nunca passar, todas as vidas assombrosas ou amadas à “memória” fotográfica. Assim, anos, muitos deles depois, haverá uma memória para ajudar a entender, aceitar tudo, para compreender como tantas marcas apareceram no nosso corpo, como tantas outras sumiram. Poder, por meio da fotografia, tornar-nos mais racionais, inteligentes para perceber o “caminho” que agora seguimos.
A fotografia, mesmo sem palavras, calada, quando expressa sentimentos, paixões proibidas, poderá ser penalizada, apagada das memórias digitais, rasgada, incinerada ou arquivada no “esquecimento”. A fotografia passa a ganhar vida própria, cria e assume personalidade capaz de “dominar” o criador. Desejada, pode, de todas as formas ser amada, idolatrada, odiada. Por ter roubado almas, sentimentos e intercalado a vida que retratava, confundido as certezas, passa agora a condição de ré. Julgada, condenada, mesmo sem devolver nenhuma alma, poderá apagar da memória muitas vidas.
A fotografia de uma mulher foi jogada no lixo. Uma foto gerada em preto e branco, a partir de um negativo de base plástica, emulsionada com nitrato de prata, tamanho aproximadamente de 50×60 cm. O rosto de uma mulher nova, delicadamente maquiada e, mesmo sem a proteção da idade, uma linda mulher. Um preto e branco perfeito. Somente as manchas em sépia “falavam” do tempo que havia passado.
Pensei em resgatá-la. Emprestar-lhe uma parede para repousar, ficar abrigada e longe do perigo, da chuva que caía, protegê-la do sol, que certamente acabaria primeiro com o papel e seguiria pela estrutura de madeira. Desejei conhecê-la, mas não encontrei coragem para investigar. Não havia desejo para levar aquela foto até minha parede. Poderia estar interrompendo um ciclo determinado a acabar para sempre, uma desordem causada por um amor sem regras, para poder ser amor. Apenas uma fotografia.
Eliminar todas as possibilidades de renovar e nunca permitir o renascer, o que restou dele. Uma paixão ou a ilusão de um amor ou uma talvez paixão, foi “condenada” ao lixo levando mágoas, ressentimentos, ódio. Nada, somente o fim.
Três semanas depois ela desapareceu. O local estava “limpo”, sem vida. No local, lixo. Ela sumiu da calçada. Não podemos perguntar ao destino. Teria recebido o perdão ou os catadores de lixo levaram? Encontrou um novo amor. Foi resgatada numa noite, tarde, sem que ninguém visse, final de um crime perfeito. Embrulhada num saco plástico preto, protegida da chuva e olhares foi salva, levada em segurança. Permaneceu horas dentro do saco, na escuridão, ansiosa à espera da parede. O prego, por fim, estava fixado. Primeiro prego daquela parede: ela nunca tivera qualquer foto pendurada. Somente um calendário que contava o tempo das ausências, mais nada. Recebeu um nome e foi transformada em símbolo. Agora é a foto de um amor que nunca existiu.
Amor fictício, história de décadas que nunca aconteceram, presente em nenhum lugar. Sozinha, agora na nova parede do quarto com cheiro de solidão que começava a amanhecer. O vento balançava a cortina. Uma luz difusa iluminava o preto e branco para contar várias histórias ao solitário que nunca se divertia com cada uma delas. Principalmente as que “aconteceram” trinta e poucos anos atrás. Hora do café da manhã. Na despedida para o trabalho, avisa que trará flores para, juntos, comemorarem o aniversário de casamento que completa hoje vinte anos.
* Alcides Freire Melo – Repórter fotográfico e cronista em diferentes periódicos. Colaborador do Portal do Envelhecimento. E-mail: alcidesfreiremelo@gmail.com