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Festa de família: a verdade que liberta

Um pai poderoso com 4 filhos completa 60 anos e aproveita a ocasião para reunir toda sua família para uma enorme comemoração. Logo no começo da festa somos apresentados aos filhos: Christian o mais velho, o tresloucado Michael, a deprimida Helena e as lembranças da falecida Linda. Sem esquecer de Elise, a mãe omissa que se cala diante da maior violência. Quando os nós familiares começam a agonizar, muitas revelações transformam a grandiosa festa em chocantes descobertas.

 

Filmes sobre questões familiares sempre foram nosso ponto fraco. Daí eu pergunto: o quanto de nossas histórias não estariam contidas nessas tramas
cruéis, perversas e tão pouco amigáveis que diretores e roteiristas nos ofertam?

A dura resposta é que há um mundo de verdades nas ficções, tudo que se considera conveniente esconder, esquecer e evitar
. Enfiar bem lá no fundo da cratera que construímos ao longo da vida e assim, morrer um pouco, entalados por um nó que só se desfaz com a revelação. Desfazer para libertar.

Creio que um dos filmes, senão o mais cáustico, seria “Festa de Família” (Festen, 1998) dirigido pelo dinamarquês Thomas Vinterberg, um dos marcos do movimento Dogma 95.

O movimento foi lançado a partir de um manifesto publicado em 13 de março de 1995. A intenção era a criação de um cinema mais realista e menos comercial, em um ato de resgate ao que era feito antes da exploração industrial.

Logo no início do filme, já nos sentimos perseguidos pela realidade auxiliada pelo uso quase caseiro da câmera. É como se toda violência, no sentido amplo da palavra, estivesse acontecendo ali, bem do nosso lado, algo que beira o insuportável.

O que antecede a Festa

Christian, o irmão mais velho da família Klingenfeldt-Hansen caminha sozinho pela estrada que o leva a suntuosa casa do Pai e da mãe. No trajeto encontra seu irmão mais novo, Michael, a esposa Mette e os dois filhos.

Já nessa cena, sentimos a violência que virá. Para o tresloucado, problemático e incontrolável Michael, o irmão Christian – representando a sagrada família – tem e terá sempre prioridade. Assim, Michael faz Mette e os filhos descerem do carro, em plena estrada para levar apenas Christian no seu carro. Tudo acontece recheado de muita discussão, palavras grosseiras e gestos rudes.

Ao chegar em casa, novos desentendimentos: Lars, o novo funcionário que os recebe na mansão do Pai, avisa que não há quarto reservado para Michael. Aparentemente, o irmão mais novo é aquele que sempre causa encrenca e desconforto à família.

Em seguida, chega Helene, a outra irmã, a deprimida. Todos se reúnem para a festa de aniversário de 60 anos do Pai.

Nesse meio tempo sabemos que a irmã gêmea de Christian se suicidou, meses antes. Os ânimos estão à flor da pele, qualquer palavra pode desencadear uma catástrofe.

Agora os três irmãos estão reunidos recebendo os convidados. A mãe, Elise, faz questão de resguardar a boa relação entre filhos e Pai. Ela aconselha Christian: “Não deixe de dizer Feliz aniversário ao seu Pai”. O encontro entre eles é tenso.

O Grande Pai chega, todos aplaudem e o parabenizam. Parece um “Deus do mal”, uma figura poderosa, autoritária e temida.

E a câmera, friamente, persegue os convidados. Chegamos no quarto de Linda, a irmã suicida, gêmea de Christian.

Para Helene, a frágil irmã, é reservado o quarto do “fim voluntário” de Linda. Ela lembra das  brincadeiras do quente e frio, das “pistas” que um irmão costumava deixar para o outro, todos os sinais que os levariam a descoberta do enigma, da sombra, do escondido, do não revelado.

Ela localiza um peixe desenhado no teto, setas sugestivas até chegar numa carta propositalmente escondida no lustre. Seriam restos mnêmicos para todos resignificarem suas existências?

Uma carta de Linda que guarda palavras que precisam ser ditas: “Quem quer que encontre esta carta, deve ser…”. Para Helene, a casa, aquela casa “sempre foi assombrada”.

A festa começa

Alguém tem a palavra: é Sachs, o mestre de cerimonia. E tudo começa com o toque da faca na taça de cristal: palavras graciosas de homenagem ao Pai, o patriarca da Familia Klingenfeldt-Hansen.

O Pai fala: “Vê-los todos reunidos me faz recordar os anos passados e tudo que aconteceu…”. A câmera para em Christian. “…fazer 60 anos não é proeza alguma. Parece que foi ontem que as negociações se concretizaram para a compra deste lugar inigualável. Foi no verão de 1971 que minha pequena família subiu as escadarias. Minha querida esposa, Helene, Michael e os gêmeos…”. Ele se emociona. “…e os gêmeos, prontos para ocupar esses adoráveis pavilhões. Estávamos tão cheios de expectativas. Vou parar por aqui. Espero que nossa festa seja maravilhosa. Vamos comer!”

Como todas as festas familiares, rolam conversinhas banais, sérias, pequenas rusgas, olhares fulminantes, nada que seja novidade. Christian ameaça falar várias vezes, hesita, parece angustiado, quer a palavra, até que finalmente…o filho mais velho decide falar: “Pai, eu tenho dois discursos, um é verde, outro amarelo. O senhor escolhe. O verde é o discurso da ‘verdade doméstica’ ou os ‘banhos de papai’. Eu era pequeno quando mudamos para cá.”

A mãe ri, ela não se dá conta do que virá, mas ele continua: “Para nós foi uma mudança total. Tínhamos muito espaço e inventávamos muitas travessuras. Naquela época, esta sala era um restaurante. Nem sei quantas vezes minha irmã Linda, já falecida e eu brincando aqui, colocando coisas na comida das pessoas sem que percebessem…Então, nos escondíamos. E ela começava a rir. Seu riso era o mais contagioso que se pode imaginar. Logo, ríamos de não aguentar mais. Éramos descobertos, claro, mas nada acontecia. Era muito mais perigoso quando papai tomava banho.”

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Nesse momento, pequenos ruídos ecoam como um trovão. O pai crispa o rosto e o desconforto é geral. Implacável, Christian segue seu discurso: “Não sei se lembram, mas papai sempre tomava banho. Ele levava Linda e eu para o escritório e tinha algo que ele tinha de fazer primeiro: ele trancava a porta e baixava as persianas. Tirava a camisa, as calças e nos fazia tirar também. Ai ele nos deitava no sofá e nos estuprava, abusava de nós…”

Ironicamente, ele agradece ao Pai. Alguém, sem nada entender, ainda ameaça bater palmas para o discurso do filho mais velho. Christian sai, considera que sua fala está encerrada e vai se despedir de seu amigo de infância, o cozinheiro Kim, que diz: “Você não pode fugir”.

Motivado pelo amigo, Christian volta à mesa e faz nova interferência: “Um brinde ao homem que matou minha irmã. Um brinde a um assassino.”

O insuportável faz com que os convidados queiram ir embora, mas os funcionários da cozinha liderados por Kim escondem as chaves dos carros. Ninguém sai. A verdade deve ser ouvida por todos.

Agora é a vez de Elise, a mãe. Ela fala um pouco de cada filho, das suas respectivas fraquezas e travessuras. Finaliza se referindo a Christian, desmentindo o depoimento do filho, “tudo é fruto da imaginação” e pede para ele se desculpar.

Depois de um longo silêncio, Christian, fala: “Depois de 1974, você, minha mãe, entrou no escritório e viu seu filho de quatro e seu marido de calça arriada. Lamento se me viu assim. E que seu marido a tenha mandado sair. E que tenha saído. Lamento por ser tão hipócrita, corrupta e eu desejar sua morte. Lamento por trinta anos…”

Christian é brutalmente interrompido por Michael que o retira do local: “Você passou dos limites”. O irmão mais velho é escorraçado, a porta da casa se fecha para ele. E o jantar continua: “Na profunda paz da floresta…” uma senhora de cabelos grisalhos, a avó, canta, como se nada tivesse acontecido.

“Temos que nos livrar dele. O que te fez falar tanta merda?”, diz Michael. Como nada pode ser revelado, já que a sagrada família deve continuar com seus segredos intactos, Christian é arrastado e preso nos jardins da mansão.

Mas Christian se livra das amarras que o paralisaram por toda uma vida e entra na casa novamente. Mais um discurso: Ele cita o epitáfio de Alfred Hitchcock: “É isso que acontece com os meninos malvados”.

Enquanto isso, os convidados festejam, dançam, fazem o trenzinho, afinal há muito que comemorar: é o aniversário do Pai.

Um funcionária da casa, Pia, desde sempre apaixonada por Christian, encontra nos pertences de Helene a carta deixada por Linda, aquela escondida no lustre (da brincadeira quente, frio): Ela diz: “Deixou cair uma coisa. Não é bom  deixar cair coisas.”

A verdade que liberta

Helene emocionada, se mune de coragem e revela a verdade, através das palavras deixadas por Linda. É a irmã falecida que tem a palavra, que está presente no aniversário do Pai, ou seja, do pai, agora finalmente derrotado: “Quem quer que encontre esta carta, deve ser meu irmão ou minha irmã porque é bom no “tá quente, tá frio”. Sei que deve ser triste me encontrar numa banheira cheia de água, mas para mim não é tão triste. Sei que meus irmãos e minha irmã são pessoas felizes, radiosas e eu amo vocês. Acho que não deviam ficar pensando em mim. Christian, meu adorado irmão, que sempre esteve ao meu lado, obrigado por tudo. Não quero meter você nisso. Amo-o demais para lhe aprontar. Papai começou de novo, a me comer…em meus sonhos. Não aguento mais, eu vou embora.”

Tentando disfarçar, o pai pede um porto para brindar em homenagem a filha morta, mas todos permanecem em silêncio. Ele insiste, nada. Ele perde o controle: “É culpa minha ter filhos tão inúteis?”

Christian responde: “Nunca consegui entender porque você fez o que fez.” O pai irredutível, diz: “Vocês só serviam para aquilo.” O pai se retira, a mãe o segue.

Sem se conformar, Michael se desespera. O pai, já não é mais aquele idealizado. O pai é, de fato, o estuprador, frio, calculista, é tudo aquilo que não se tem perdão.

Michael grita: “Pai, é o pequeno Michael. Estou chegando! Abra a porta!”. Ele ataca o pai e diz:

“Nunca mais verá seus netos. Nunca mais, entendeu, pai? Esta família ‘kaput’!

Enquanto acontece o acerto violento de contas, Helene e Christian dançam, brincam, sorriem…se abraçam. Agora eles estão libertos de todas as amarras, da crueldade que mora ao lado, da impotência que paralisa. A verdade devolveu a vida à eles, assim como a morte fez de Linda uma mulher livre.

Um novo dia amanhece. Todos estão a mesa do café. O pai pede a palavra: “sei que nunca mais os verei. Agora eu vejo que o que fiz com meus filhos…foi imperdoável. Sei que todos vocês especialmente meus filhos…me odiarão pelo resto da vida. Mas serão sempre meus filhos e que eu os amei e amo, não importa o mundo em que estejam ou o que façam. À você Christian, quero dizer que lutou o bom combate, meu menino.

Michael se levanta e vai em direção ao pai: “Muito bom, pai. Ótimo discurso. Bem feito. Mas terá de se retirar para podermos tomar café”. O pai se levanta, a mãe fica.

Ao som de uma suave melodia de uma caixinha de música que nos leva ao calor afetivo da infância, mais uma história de família termina ou começa.

Como seguir a vida com tanta verdade? Christian, Linda, Michael e Helene, romperam duramente seus vínculos familiares enfrentando tudo o que pode existir de mais cruel: a constatação de que a pior das violências pode acontecer onde menos esperamos, no seio, no colo de papai e/ou na omissão de mamãe. Assim é Thomas Vinterberg, um diretor sem freios, sem censura, mas com um vasto compromisso com a verdade.

Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=psHwm0a30UU

Luciana Helena Mussi

Engenheira, psicóloga, mestre em Gerontologia pela PUC-SP e doutora em Psicologia Social PUC-SP. Membro da Comissão Editorial da Revista Kairós-Gerontologia. Coordenadora do Blog Tempo de Viver do Portal do Envelhecimento. Colaboradora do Portal do Envelhecimento. E-mail: lucianahelena@terra.com.br.

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