Será que existo? Serei apenas um humano regular e o que é que este humano regular sabe fazer? Serei um líder sem o saber? É claro que não. Serei aquele ser paciente com impaciência de conseguir as coisas; conseguir o quê? Uma nuvem de dúvidas encobre o meu ser.
Marie Claire Blatt (*)
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A angústia toma conta de mim, o coração bate mais do que o habitual. Sinto a garganta seca e me precipito na direção do copo de água que está em cima da mesinha redonda. Um gole, só um gole para poder respirar melhor. Não se preocupe será apenas uma simples entrevista. Estas foram as últimas palavras que recordo ter ouvido no telefonema que recebi de uma conhecida pela manhã. Ela disse estar trabalhando na montagem de um canal no YouTube com o nome de Orgulho 60+. Agora, às dezessete horas, só posso pensar no outro telefonema que recebi no início da tarde. Peço perdão, mas acho que não me expliquei direito, o que vou precisar de fato é um depoimento seu sobre a sua vida e o seu envelhecimento e tudo mais.
E, aqui estou, sentada na beira da minha cama, olhando pela janela as palmeiras balançando e estou completamente apavorada. Um depoimento; ai minha Nossa Senhora dos Angustiados. De repente aquela sensação horrível de garganta seca, coração em disparada, falta de ar, um zumbido nos ouvidos e até o barulho da rua se torna insuportável. Faço um esforço, mas em vão, o ar não passa, sinto uma pressão indescritível, a sensação de que vou desmaiar ou morrer a qualquer momento. Corro para o banheiro: um jato de água fria no rosto e a água nem está tão fria devido ao calorão que tem feito.
Se organize mulher, o que você tem nada mais é que uma crise de existencialismo, grita a voz da minha consciência. Estou estupefata. Como assim, isto só acontece com adolescentes. Crise existencial aos 80 anos é ridículo, insensato, inimaginável, é pura bobagem. É exatamente tudo isto e é o que está acontecendo com você diz à voz da consciência. Mas e o depoimento, o que vou dizer, não sou nada, apenas uma velha senhora. Parece que minha vida está vazia; o que é que posso contar se tudo me parece tão banal. Acho que quero voltar a ser selvagem e desaprender tudo aquilo que me foi obrigada a ser.
Eu me recordo de ter ouvido um talk-show, há algum tempo, onde o locutor dizia que todos nós possuímos qualidades e talento e que as pessoas que não conhecem a si mesmas e quiserem saber quem são só precisam fazer a pergunta aos amigos, pois são estes que dirão com toda honestidade as qualidades e defeitos. Se organize, diz a voz da minha consciência, eu vou te dizer quem você é.
Você saiu da sua zona de conforto, não aceitou o luto permanente pela morte do filho e então lutou, levantou a cabeça, decidiu viver e se reinventou. No início frequentou atividades da Unibes onde participou e participa até hoje do grupo de dança Israeli e do coral. Escreveu histórias de memória e isto provou que você pode e consegue o que quer. Em seguida escreveu crônicas e contos musicados e com isto novos horizontes se abriram e você proporcionou lazer para o público de centros de convivência e de longa e curta permanência. Com o curso Velhice Uma Nova Paisagem de Maria Célia de Abreu, uma nova janela se abriu e você começou a ter uma visão diferente sobre o envelhecimento. O trabalho na clínica foi um grande aprendizado e o curso de jornalismo Repórter 60+ trouxe atualização e abertura para assuntos que já eram do seu conhecimento. Foi com o curso da Profa. Cremilda Medina que você encontrou o caminho para a arte da pluma. A participação na Virada da Maturidade foi e está sendo uma experiência incrível. Sem mencionar que nesta jornada você também virou poetisa. O teu violão, teu teclado e tudo mais dão um colorido e significado especial à tua vida. Isto prova que esta crise de existencialismo é como a tempestade que vem e vai, mas não é válida para uma pessoa como você; acorde e veja como tenho razão, diz a voz da consciência em alto tom.
Olho novamente as palmeiras. As nuvens estão sumindo deixando aparecer um céu azul pronto para receber o sol. Aos poucos aquela ansiedade está desaparecendo e me sinto bem melhor; agora pelo menos acredito saber quais as palavras usar no tal do depoimento. Se nascer é difícil, o que dizer de envelhecer? Afinal é preciso reconhecer que oitenta anos não é para qualquer um viver.
(*) Marie Claire Blatt – 80 anos, natural de Paris, França, entusiasta da vida e eterna estudante. É contadora de suas próprias histórias e crônicas, musicadas, que apresenta para proporcionar lazer às pessoas da terceira idade. E-mail: mceshkenazy@yahoo.com.br
Foto destaque: Keegan Everitt
Como construir histórias do protagonismo social? Laboratório de leitura cultural. Possibilidades da estrutura narrativa, inspiradas na captação do real e editadas pela criatividade do autor. Oratura e literatura nos diálogos. A arte de criar narradores. Estes são alguns dos temas trabalhados pela Profa. Cremilda Medina nesta oficina que está com inscrições abertas: https://edicoes.portaldoenvelhecimento.com.br/produto/oficina-de-narrativas/