Viva a Arte tão desprezada e incompreendida atualmente. Eu quero mooooorrer para não ver a escuridão tomar conta dos novos tempos. Eu quero moooorrer ao ver os velhos tendo suas dignidades mortas e suas velhices desprezadas.
Depois do susto que passei com o coração do meu pai, achei por bem tomar vergonha e fazer um checkup cardiológico.
Tenho me sentido muito cansada e sem fôlego para encarar as lutas por meus sonhos.
O cardiologista, recomendado, me pareceu competente. Por sorte, quis saber um pouco de mim e não demorou a começar a fazer algumas perguntas:
-Sente dor no peito?
-Tudo dói, respondi.
-Você fuma?
-Não
-Bebe?
-Não
-Sente falta de ar? Parei para pensar.
-Costuma desmaiar? Será que os desmaios da minha alma contam?
E lá estava eu, fazendo eletro enquanto meus pensamentos me levavam de encontro à infância da minha filha.
Quando meus filhos eram pequenos, lembro do absoluto cuidado com tudo que fazia. Tentava mostrar à eles o melhor de mim já que era muito comum vê-los imitando minhas falas e atitudes. Um amor tão profundo que nos torna o espelho do outro, afinal, quem não deseja se parecer com aquele que ama? Pois bem, minha filha Larissa, quando pequena, era extremamente dramática.
CONFIRA TAMBÉM:
Gostava de fingir que a vida era uma apresentação de teatro e quando algo não saía como o planejado ela fingia desmaiar.
Eram desmaios dignos de uma artista que, sem nenhum constrangimento, deixava seu corpinho todo desabar ao chão.
Achava aquilo um tanto estranho e de mau gosto, mas acabava achando graça quando em seguida, ela perguntava: e aí mãe, foi bom o desmaio?
Lembro de uma vez que ela pintou todo o rosto com Hipoglós e no meio daquela pasta branca apenas seus olhinhos pretos, muito alegres, faziam a tal encenação.
Era dramática! Não sei dizer quem ela puxou, mas talvez o meu pai saiba já que ele sempre me assegurou que nasci para ser prima dona de ópera. Porquê será? Coisas de pai, sem fundamento algum já que eu continuo negando, de pés juntos, que sua dramaticidade era uma inocente imitação de algo que ela percebia em mim.
Lembro da Larissa fingindo seus desmaios com tanta seriedade que até a cachorra Nina chegava perto para verificar o ocorrido e ela era a única que a tirava da cena!
-Vamos Nina! Vamos brincar! Dizia ela propondo mudar de brincadeira.
Como disse, achava aquilo estranho, porém curioso já que percebia algo lúdico nas cenas.
Seus irmãos não a deixavam pegar o brinquedo, ploft, ela desmaiava, o sorvete havia terminado, outro desmaio, nada de chocolate antes do almoço, desmaio.
– Larissa, se um dia você passar mal de verdade ninguém irá acreditar, eu dizia.
Por sorte ela nunca desmaiou de fato e nunca falava o tal “eu quero moooorrer” com o real desejo de morte.
Mas entendo que era uma curiosa maneira de dizer: isso não está legal, melhor achar diversão na situação e levar o brincar para a cena.
Quando devolvi o espaço do Atelier que alugava para trilhar novos caminhos ela dizia: eu não vivo sem arteeeeee! Eu quero moooooooorrer! Ploft.
Sabe Larissa, essas cenas têm me vindo muito à cabeça. Você cresceu e entendeu que para os desagrados da vida precisamos mostrar reações. Deixar-se tombar é muito mais fácil, mas isso, ou nos tira da briga por nossos desejos, ou anula todos eles.
Você compreendeu e tem ido atrás dos seus sonhos, eu dos meus, enquanto alguns deles se cruzam nas nossas vontades por igualdade social e justiça. Muito me orgulho da pessoa reativa que você se tornou, mas a verdade é que ultimamente, vendo tantos obstáculos e injustiças em nosso país e vendo meu jogo sempre com bola na trave, tenho constantemente tido vontade de desabar ao chão e gritar: eu quero mooooooorrer!
Não é o morrer de não mais querer viver já que a vida sempre dá um jeito de me cativar, mas é um morrer que quer gritar: Chega! Deixem a vida acontecer! Vamos viveeeeeer! Sem arte eu não vivo! Sem arte Manoel não existiria para além da patologia. Teria vivido o derrame sem encontrar suas certezas de realizações. Sem arte Leopoldo nunca teria achado a identidade conquistada de artista talentoso que se descobriu após um acidente de carro que lhe custou o braço direito de alguém destro. Foi a Arte que o ajudou na reabilitação e o ensinou a fazer do braço esquerdo o braço dominante! Viva a Arte tão desprezada e incompreendida atualmente. Eu quero mooooorrer para não ver a escuridão tomar conta dos novos tempos!
Desabo em desmaios da alma ao perceber o total desprezo pelas áreas que nos ensinam a pensar e a questionar a vida!
Eu quero moooorrer ao ver os velhos tendo suas dignidades mortas e suas velhices desprezadas.
Pálida como se estivesse com Hipoglós no rosto caio no abismo quando percebo a insanidade imposta pelo próprio povo descontente e cansado da desonestidade. Corremos perigo!
Velhos moradores de rua e sem direito a nenhum acolhimento humano! Eu quero moooooorrer!
O preconceito que fingia ter sido extinto volta como protagonista excluindo aqueles que não se enquadram nos padrões chatos de uma sociedade mais chata ainda! Pobreza de alma! Eu quero mooooorrer! Aposentadorias como migalhas para os velhos que contribuíram por toda uma vida! Eu quero mooooorrer!
Cansada de explicar o que faço! Eu quero moooooorrer!
Perceber a Gerontologia de muitos tão amarrada unicamente à Geriatria! Eu quero moooooorrer!
A velhice imposta unicamente como doença ou ao bom velho que corre maratona! Eu quero mooooorrer!
O mundo está errado e eu me sinto desiludida! Estou exausta!
Saio do consultório do cardiologista com a certeza de que o coração precisa de atenção e de que eu, preciso recuperar o fôlego.
Os desmaios da minha mais profunda existência não podem continuar roubando meu sono e meus desejos.
Penso na minha filha e entendo que está na hora de mudar de brincadeira.
Eu quero viveeeeeeer para envelhecer. Quero ser velha mesmo sabendo que jamais vou correr uma maratona.
Vamos deixar os desmaios de lado e reagir.
Amanhã agendo os exames de rotina, o eco isso eco aquilo.
O coração precisa de cuidados assim como a vida.
Cansada, tomo banho e vou ver jornal na televisão, afinal faz tempo que não vejo notícias.
O mundo parece estar do avesso. Eu quero moooorrer!
Calma! Vamos com calma! Respira fundo! E, assim, conversando comigo mesma vou me acalmando.
“Chico Buarque ganha o prêmio Camões de literatura”
Sim! Eu quero viver para ver a inteligência vencer a ignorância e a Arte alcançar seu merecido lugar.
Com o coração mais tranquilo resolvo dormir.
Ajeitada no travesseiro com minha cachorra acomodada nas minhas pernas, adormeço com minha alma cantarolando:
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino pra lá
Roda mundo, roda-gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
Amanhã é um novo dia.