Eu atravesso o tempo ou o tempo me atravessa?

Eu atravesso o tempo ou o tempo me atravessa?

No redescobrir da rotina também se abre espaço para refletir sobre o sentido maior do envelhecer. Afinal, o que fazer com esse tempo tão marcado na velhice?


A velhice não se resume às transformações do corpo que ocorrem com a passagem do tempo. Ela também é tecida por relações, vínculos sociais, vivências pessoais, crenças e experiências culturais que dão sentido à vida.

Não é apenas a soma de aspectos biológicos, psicológicos e sociais, mas a interação entre eles na constituição da totalidade humana. Nessa perspectiva, compreendemos que as mudanças ao longo da vida impactam cada indivíduo de forma singular.

Com o avançar dos anos, chegam transformações inevitáveis: aposentadoria, filhos que saem de casa, distanciamento de amigos, doenças, lutos e frustrações. Quando algo desorganiza a rotina, o efeito pode ser tão intenso que leva ao adoecimento psíquico ou emocional: a pessoa perde o sentido de viver, desanima e o tempo parece arrastar-se — viver torna-se um fardo.

Escuto esses relatos com frequência e me pergunto: por onde iniciar? Como apoiar? Começo devagar: conheço a história de vida, os gostos, os interesses. Aos poucos, vamos identificando redes de apoio e resgatando autocuidado, fé e a força para seguir em frente depois da tempestade.

Esse processo se sustenta em cuidados básicos: higiene pessoal, alimentação equilibrada, sono reparador, convivência social e prática de exercícios. Para isso, proponho pequenos acordos, como manter horários regulares de refeição, o que facilita a organização do cotidiano.

O simples ato de cozinhar, por exemplo, mantém a atenção no presente, estimula os sentidos e interrompe pensamentos negativos. Atividades como preparar uma refeição, escrever ou caminhar, quando feitas com atenção plena, fortalecem corpo, mente e vínculos sociais.

Com o tempo, esses combinados ajudam a romper a inércia de um cotidiano empobrecido. É essencial, porém, que exista vínculo e respeito à singularidade. Só assim as propostas terão significado.

Além dos cuidados diários, os compromissos sociais também são fundamentais nessa fase da vida. A diminuição das interações pode reduzir a capacidade de resiliência, intensificar preocupações, reforçar o isolamento social e acentuar alterações cognitivas.

Esse enfraquecimento das relações presenciais se soma a outro obstáculo importante: a exclusão digital, que afasta muitos idosos das oportunidades de participação e autonomia.

Para ilustrar, lembro de uma idosa que enfrentou um processo de luto profundo: a perda do filho, por quem nutria verdadeira adoração. Ele faleceu há cinco anos e a dor ainda é muito presente. Diante desse sofrimento, o tempo para ela parece não passar. Sem ânimo, fazia apenas o essencial.

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Os familiares a visitavam de forma breve, mantendo mais contato por mensagens do que por conversas verdadeiras. Certo dia, recebeu um convite para um casamento. Preparou-se com carinho: pintou o cabelo, escolheu roupa, sapato e bolsa. No dia, ninguém foi buscá-la. Sem saber usar aplicativos de transporte e sem recursos para pagar, ficou em casa. A tristeza dessa experiência demorou dias para ser elaborada.

Esse episódio sintetiza várias situações enfrentadas pelos idosos: isolamento social velado, dificuldades financeiras, barreiras digitais e solidão.

O relato demonstra como fragilidades físicas, emocionais ou sociais reduzem a capacidade de enfrentamento e de resolução de problemas. O investimento em relações saudáveis e de cooperação torna-se apoio indispensável e mais alinhado às necessidades da pessoa idosa.

Portanto, é essencial para o profissional de saúde atuar no fortalecimento das redes de apoio, estimular aprendizagens significativas e oferecer uma escuta qualificada e acolhedora. Além disso, é preciso favorecer ações educativas que inspirem mudanças em direção a hábitos mais saudáveis e incentivem a inclusão digital — caminhos que abrem novas possibilidades de viver com mais qualidade e sentido.

Estar atento à rotina é fundamental, pois quando redescoberta com propósito, ela deixa de ser peso e se transforma em ferramenta de superação. Uma rotina com significado estimula autonomia, favorece independência, fortalece a autoestima e mostra que sempre é possível recomeçar.

É nesse redescobrir da rotina que também se abre espaço para refletir sobre o sentido maior do envelhecer. Afinal, o que realmente desejamos? Apenas prolongar os dias ou viver com propósito? O que fazer com esse tempo tão marcado na velhice?

A verdadeira potência do envelhecimento está na busca por sentido, no pertencimento dos vínculos e nas atividades cotidianas realizadas com intenção — movimentos que tornam o envelhecer verdadeiramente ativo, participativo e integrado à sociedade.

A ideia deste texto é justamente lançar luz sobre esses desafios, para que cada leitor possa refletir sobre o seu papel na sociedade. O que temos feito em nossas relações familiares e profissionais para promover um envelhecimento ativo e participativo?

Foto de Pixabay/pexels.com


mulher adulta vestindo blusa azul e sorrindo pra foto
Suhaila Harati

Suhaila Harati das Neves é Terapeuta Ocupacional, mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP, pós graduação em Terapia Ocupacional aplicada a Neurologia pelo Einstein, atuante no SUS- Atenção Primária. Colaboradora do Portal do Envelhecimento. E-mail: su_to2002@yahoo.com.br

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Suhaila Harati das Neves é Terapeuta Ocupacional, mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP, pós graduação em Terapia Ocupacional aplicada a Neurologia pelo Einstein, atuante no SUS- Atenção Primária. Colaboradora do Portal do Envelhecimento. E-mail: su_to2002@yahoo.com.br

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