Em outubro, além de celebrarmos a democracia através das eleições, comemoramos o Dia Internacional do Idoso e os três primeiros anos da Lei 10.741, o Estatuto do Idoso. Nesta oportunidade, muitos grupos em todo o Brasil reúnem-se para divulgar e discutir esta lei, sempre guiados pela pergunta: “o que diferencia o idoso dos demais cidadãos e o faz merecedor de uma legislação especial?”.
Anna Cruz de Araújo P. Silva *
O mundo assiste a uma revolução demográfica, o “avesso do baby boom”: segundo previsões da ONU, em poucas gerações a atual proporção de para cada 14 pessoas, 1 é idosa passará a para cada 4 pessoas, 1 idosa. No Brasil, o IBGE informa que, em 2020, os idosos serão 25 milhões, 11,4% da população total. Emprestando a poesia de Chico Buarque e Sérgio Godinho em “Um tempo que passou” (1983), encontramos a dimensão do que isto representa: “São mais de um milhão, uma legião, um carrilhão de horas vivas. Quem sabe dobram juntas as dores coletivas”.
No entanto, embora cresça expressivamente a população acima de 60 anos, e ainda que seja o envelhecimento um processo universal, “uma das poucas coisas que nos unifica e define”, segundo a Organização Mundial de Saúde, os idosos não são todos iguais e, por isso, não devemos tratá-los como uma “categoria” própria. Ainda assim, mesmo não os considerando uma “categoria”, acreditamos que um Estatuto diferenciado, especialmente destinado a estes “adultos maiores”, é justificado pelas condições especiais que enfrentam nesta fase da vida, como mudanças nos arranjos familiares, saída do mercado de trabalho, maior fragilidade física; etc. É neste cenário que o Estatuto do Idoso, constituindo direitos importantes, contribui para formação de uma “sociedade receptiva”, isto é, em que todos possam viver dignamente.
Desta forma, reunidos na lei, organizados sistematicamente, os direitos dos idosos, se não se tornam mais “concretos”, tornam-se pelo menos mais fácil consulta, divulgação e proteção. Por essa razão, outra vez mais valendo-nos de Chico Buarque, reconhecemos que, independentemente de falhas que ainda apresente ou das motivações políticas que tenham envolvido sua elaboração, a Lei 10.741 é bem vinda: “pode ser que você venha por mero favor ou venha coberta de amor, seja lá como for venha sorrindo, ai bem vinda, bem vinda” (Benvinda, 1968).
Analisemos, então, brevemente algumas passagens desta lei: o Estatuto torna família, Estado, sociedade e comunidade co-obrigados a garantir ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos à vida, à saúde, à alimentação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. Estes parecem direitos tão básicos, que evocamos a ironia de Chico durante o regime militar brasileiro: “por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir, a certidão pra nascer e a concessão pra sorrir, por me deixar respirar, por me deixar existir… Deus lhe pague!” (Deus lhe pague, 1971).
No entanto, esta prioridade compreende ainda o atendimento preferencial tanto em órgãos públicos quanto privados (bancos, supermercados, consultórios, etc.), a preferência em formulação e execução de políticas públicas, a destinação privilegiada de recursos públicos às áreas de proteção ao idoso, a capacitação e reciclagem de profissionais nas áreas de Geriatria e Gerontologia, o estímulo a participação, ocupação e convívio intergeracional, a preferência do atendimento familiar em detrimento do asilar, a divulgação de informações educativas sobre envelhecimento, a garantia de acesso à saúde e à assistência social locais, isto é, prestação de atendimento no mesmo Município que o idoso habite.
É também responsabilidade solidária, ou seja, de todos, prevenir a ameaça ou violação aos direitos do idoso, zelando por sua dignidade, colocando-o a salvo de tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor e comunicando à autoridade competente qualquer forma de atentado a estes direitos.
No tópico relacionado à saúde, o Estatuto garante “proteção integral”, o que equivale dizer que em todos os momentos, desde antes do adoecer até a reabilitação, o idoso deverá encontrar cuidados através de prevenção, promoção, proteção e recuperação, garantindo-lhe atendimento geriátrico e gerontológico em ambulatórios, atendimento domiciliar aos que precisarem, fornecimento gratuito de medicamentos, especialmente os de uso continuado, além de órteses, próteses, etc., e direito a acompanhante quando internado ou em observação. Além disso, proíbe a discriminação do idoso nos planos de saúde através de cobrança diferenciada em razão da idade – tem-se entendido, contudo, que tal disposição não se aplica aos contratos celebrados antes da vigência do Estatuto, mas somente para aqueles assinados após o dia 1o de janeiro de 2004. Considerando que o avançar dos anos não é suficiente para considerar o idoso privado de discernimento, a lei assegura ainda ao idoso autonomia para, estando lúcido, optar pelo tratamento de saúde que desejar.
O Estatuto garante ainda descontos para idosos de no mínimo 50% em atividades culturais e preceitua a criação de espaços especiais voltados aos idosos em TV, rádios, revistas, etc.. E, sobre a profissionalização e o trabalho, segue a orientação da Constituição Federal, garantindo ser livre o exercício de qualquer trabalho, proibindo a discriminação e a fixação de idade máxima para admissão do idoso em qualquer serviço, ressalvados os casos em que a natureza dos cargos exigir.
O Estatuto assevera a gratuidade aos maiores de 65 anos em coletivos urbanos e semi-urbanos, assegurando que nestes meios de transporte serão reservados 10% dos assentos para idosos. Também nos estacionamentos, 5% das vagas serão reservadas a idosos, embora não lhes seja dispensado pagamento de eventuais taxas, nesta hipótese.
Garante-se também aos idosos, prioridade na tramitação dos processos e procedimentos e na execução dos atos e diligências judiciais em que figure como parte ou interveniente. Por lógica, quanto mais idoso, maior a prioridade, mas a lei silencia a este respeito.
A Lei 10.741 tipificou como crimes condutas com as quais nocivamente muitos se acostumaram, como a discriminação da pessoa idosa, impedindo ou dificultando seu acesso a operações bancárias, aos meios de transporte, ao direito de contratar ou por qualquer outro meio ou instrumento necessário ao exercício da cidadania; a apropriação ou desvio de rendimentos do idoso, dando-lhe aplicação diversa da de sua finalidade ou, por exemplo, a exibição, por qualquer meio de comunicação, de informação ou imagens depreciativas ou injuriosas à pessoa do idoso.
Finalmente, ainda é importante lembrarmos que uma lei não é a solução para a maioria de nossos problemas. Chico pondera em “Qualquer canção” (1980) que “qualquer canção de amor é uma canção de amor, não faz brotar amor e amantes”. Da mesma forma, infelizmente, o Estatuto não fará “brotar” respeito pelos mais velhos. Chico, continuando, ainda nos diz: “porém, se essa canção nos toca o coração, o amor brota melhor e antes”. Novamente, comparando com o Estatuto, acreditamos que, embora ele não seja apto a, sozinho, criar respeito, ele suscitará o debate e, com isso, sendo cada vez conhecido e difundido, “chegando ao nosso coração”, há de se revelar eficaz.
*Anna Cruz de Araújo P. Silva – pesquisadora mentora, advogada OAB-Pa 12.530, pós-graduação em Geriatria e Gerontologia.