Os moribundos não lamentaram não terem ficado mais horas na frente da televisão, mergulhado mais no trabalho, se dedicado a acumular mais dinheiro, se envolvido em disputas mais inúteis por razões banais, não terem passado mais horas de sua vida discutindo política ou políticos, acumulado mais bens materiais… Coisas sem sentido.
Sergio Sinay (*)
A médica suíça Elisabeth Kübler-Ross (1926-2004) dedicou sua vida, desde muito jovem, a acalmar a dor humana no trânsito final da existência. Seu trabalho com pacientes terminais facilitou bastante a passagem de milhares de pessoas à morte, o mais profundo mistério que os humanos enfrentam. “Meus pacientes que morreram nunca melhoraram fisicamente, mas todos melhoraram emocional e espiritualmente”, escreve Kübler-Ross em A Roda da Vida, sua autobiografia exemplar e comovente. Ela acrescenta:
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“Meus pacientes moribundos me ensinaram muito mais do que o que é morrer. Eles me deram lições sobre o que poderiam ter feito, o que deveriam ter feito e não fizeram até que fosse tarde demais, até que estivessem doentes ou fracos demais, até que eram viúvos ou viúvas. Eles me ensinaram coisas que faziam sentido, não sobre como morrer, mas sobre como viver “.
Elisabeth lembra que ninguém naquele último transe lamentou que não tivesse ficado mais horas na frente da televisão, por não ter mergulhado muito mais no trabalho, por não ter se dedicado a acumular mais dinheiro, por não ter se envolvido em disputas mais inúteis por razões banais, de não ter passado mais horas de sua vida discutindo política ou políticos, de não ter acumulado mais bens materiais.
Hoje eu poderia acrescentar que ninguém reclamou de não ter ficado imerso por mais tempo nas redes sociais, de não ter passado mais horas no WhatsApp, de não ter viralizado mais memes bobos e sem graça, mais notícias falsas, mais fofocas sobre pessoas conhecidas ou desconhecidas, ninguém se queixaria de não ter prejudicado mais reputações, de não ter perdido mais tempo se entregando a bebidas, acumulando ressentimentos ou em compras no shopping.
É possível intuir, a partir das experiências relatadas por essa médica, que ninguém – ou muito poucas pessoas – estaria, no momento final, procurando o culpado de sua vida não realizada. Porque esse culpado não existe. Mas, sim, existe um responsável. “O maior presente que Deus nos deu”, escreve Kübler-Ross, “é o livre arbítrio. Mas essa liberdade exige responsabilidade, a responsabilidade de escolher o certo, o melhor, o mais atencioso e respeitoso, para tomar decisões que melhorem a humanidade”. A pessoa responsável por sua própria vida é quem a vive.
Em tempos difíceis e turbulentos, como os que estão acontecendo hoje e aqui, há o desafio de imaginarmos nosso momento final e perguntarmos como distribuímos nosso tempo, nossas energias, nossa atenção, nossa intenção enquanto poderíamos fazê-lo. Embora cause alguma apreensão, este exercício pode nos colocar de frente com o nosso presente, para percebermos a maneira como estamos vivendo e como estamos atribuindo nosso tempo a nossas prioridades. Estamos atribuindo tempo ao que é urgente ou ao que é importante? Ao banal ou ao transcendente? Ao efetivo ou ao afetivo? Ao que nos intoxica ou ao que nos cura? Olhamos para o nosso umbigo ou olhamos nos olhos um do outro? Buscamos culpados ou nos fazemos responsáveis? Competimos ou cooperamos? Dedicamos tempo ao ressentimento ou à compaixão?
É preferível enfrentar essas perguntas hoje e não quando já seja impossível alterar as respostas. Talvez tenhamos que gastar mais tempo explorando essas respostas do que seguindo as vozes que nos levam a participar furiosamente de uma das muitas brechas oferecidas para cultivar o ódio, a intolerância e o fanatismo.
Talvez precisemos construir destinos mais comuns e fortalezas menos egoístas e à “prova de pessoas próximas”. Talvez tenhamos que dar menos atenção às canções de sereias de políticos e vendedores de várias fantasias, que não são sereias, mas tubarões vorazes, e abrir mais espaço para outras músicas, às da arte, às da alma. Talvez não devamos acreditar cegamente naqueles que, estúpidos, nos dizem que o principal é a economia. Seria muito triste ver que na hora final isso não importa, mas que não há mais tempo para reverter…
(*)Sergio Sinay nasceu em Buenos Aires, é escritor e jornalista, especialista em vínculos humanos. E-mail: sergiosinay@gmail.com. Texto publicado em La Nación, em 13/10/2019. Tradução livre de Dhara Lucena.