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A escuta musical Kairosiana no envelhecimento

Durante a história, diversas culturas buscam entender e controlar o tempo. Cada qual a sua maneira, desenvolvem calendários, relógios e outros instrumentos que procuram medir, dividir e subdividir a passagem dos dias, meses, dos ciclos planetários etc. Na mitologia grega encontramos duas maneiras de entendimento do tempo, que são representadas pelo mito de Cronos e Kairós.

Rafael Ludovico Moreira *

 

Este artigo começou a ser desenvolvido no curso de Mestrado em Gerontologia da PUC-SP na Disciplina “A Problemática Geracional”, ministrada pela Professora Dr. Flamínia Lodovici, fruto de alguns estudos e que ainda está em construção. Aqui se apresenta as primeiras reflexões.

Durante a história, diversas culturas buscam entender e controlar o tempo. Cada qual a sua maneira, desenvolvem calendários, relógios e outros instrumentos que procuram medir, dividir e subdividir a passagem dos dias, meses, dos ciclos planetários etc.

Os mitos surgem como uma maneira simbólica de tentar entender ou explicar situações que muitas vezes fogem a compreensão racional. Leite (2016) aponta: “os mitos nos fazem pensar e refletir sobre a nossa origem e nos remetem ao caminho para chegarmos a uma possível verdade”. Os mitos servem também de orientação para um entendimento, ou como explicação de alguns acontecimentos, para quais não conseguimos encontrar respostas.

Na mitologia grega encontramos duas maneiras de entendimento do tempo, que são representadas pelo mito de Cronos e Kairós.

Cronos representa o tempo cronológico, regrado, medido, subdividido. Martins, Aquino et al. (2012) apontam que é da palavra grega kronos que derivam cronômetro, cronológico, cronograma etc. Todas revelam o aspecto de um tempo que é controlado e que se finda.

Podemos entender a representação de Cronos em alguns versos da cantata Carmina Burana – Fortuna Imperatrix Mundi, Orff (1936), onde, a partir de escritos encontrados em um antigo mosteiro na atual Bavária – que data de aproximadamente do ano de 1230 -, monges fazem reflexões sobre a Roda da Fortuna e as finitudes da vida:

[…]Gozar saúde,

mostrar virtude:

isto escapa minha sina;

opulento

ou pulguento

o azar me arruína.

Chegou a hora,

convém agora,

o alaúde dedilhar;

a pouca sorte

do homem forte

devemos todos lamentar.

Kairós, em contrapartida, representa o momento oportuno, o prazer de vivenciar o momento, um tempo que de certa forma é atemporal. Agamben (2009) entende Kairós como um tempo messiânico, como a constante interrupção da cronologia como um tempo outro. Mucida, no texto Escrita de uma Memória que não se Apaga (2009) diz que “escrever com a contingência da vida é saber transitar no tempo que passa dirigindo-se ao passado, bebendo de suas fontes e enlaçando-o ao presente e ao futuro sempre incerto”.

Kairós não trabalha com o passado, tampouco prevê o futuro, ele vivencia somente o presente, no entanto, o futuro e a incerteza que Mucida relata, de maneira indireta, acaba por se referir ao tempo Kairós, pois não sabemos o que nos aguarda e não podemos prever quando teremos outro “encontro” com o tempo oportuno (kairosiano), dessa forma devemos viver intensamente o presente.

Apesar de suas representações, podemos entender Kairós sob visões e perspectivas diversas, como por exemplo, as artes vivenciadas através de Kairós, o trabalho feito, através de Kairós, a religiosidade vivenciada através dele, enfim, diversos âmbitos da existência podem ou não ser vistos ou vivenciados através dessa perspectiva. Isso pode significar uma maneira mais descontraída de viver.

Falando sobre música encontramos manifestações relacionadas a ela desde os primórdios da nossa espécie, em todas as sociedades, desde as mais primitivas, até as mais avançadas. Leinig (2009) descreve que as primeiras referências sobre música chegaram até nós por meio dos desenhos esculpidos nas pedras. Também aponta que a música faz parte de uma parcela ininterrupta de fatos e eventos ocorridos que marcaram a vida de nossos antecessores.

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Complementando esse pensamento, Candé (2001) aponta que nas sociedades mais primitivas a música era um ato comunitário, ou seja, a música era e até hoje ainda é a manifestação de uma cultura coletiva, “toda expressão cultural estabelece uma estreita relação com o processo histórico” (Millecco, Brandão e Filho, 2001, p.31).

Oliveira et al. (2012 p.89) citando Padilha (2008) discorrem: A influência musical no idoso é um fator significativo para proporcionar a este uma melhor qualidade de vida, pois a música pode melhorar o desenvolvimento motor e cognitivo, é responsável por facilitar a expressão de sentimentos, é considerada uma forma de comunicação que permite maior interação social e também é capaz de estimular o indivíduo a refletir sobre sua vida. A música também é um importante fator de contribuição para o desenvolvimento da coordenação motora e restabelecimento da memória. Dessa forma, essa terapia também é capaz de auxiliar na reinserção do indivíduo na sociedade, já que este, além de recuperar a capacidade motora de determinados movimentos, também passa a se sentir útil para a sociedade e para si mesmo, tendo mais autonomia e menos solidão, evitando doenças depressivas, características da terceira idade.”

Muitos são os aspectos simbólicos e subjetivos que a música pode apresentar. Bruscia (1987) destaca: “Quando se toma uma perspectiva psicanalítica, um pressuposto principal é o de que música do indivíduo é uma projeção simbólica de aspectos inconscientes do self. Os elementos musicais e os processos através dos quais eles se revelam e interagem dentro da improvisação, são representações simbólicas de elementos inconscientes do self e dos processos através dos quais esses elementos se revelam e interagem na personalidade. Portanto, cada elemento musical representa simbolicamente um aspecto particular da personalidade, e cada processo musical corresponde a um processo psicológico.”

Debert, por outro lado, destaca que as diversas formas de nomear a velhice e seus significados resultam na reflexão sociológica sobre o estudo do envelhecer, o que faz pensar na forma pela qual o envelhecimento é concebido e vivido pela nossa sociedade. E Oliveira et al (2012 p.88) apontam que “o equilíbrio psíquico do idoso depende da maneira como ele aceita a realidade que o cerca e quando isso não acontece de maneira positiva, surgem as reações psicopatológicas do envelhecimento”.

É inegável a importância da música no corpo humano. Bruscia (2000, p. 109) relata que: “A música mobiliza todos os sentidos, e também produz estímulos motores, táteis e visuais, proporcionando-nos oportunidades de responder através destes canais sensoriais”. A partir desse pensamento podemos refletir sobre como a música é entendida e sentida por um indivíduo e como ela o afeta.

Diversas obras musicais trazem questões referentes ao tempo, a própria produção musical deve ser regrada e obedece a princípios básicos da música, como ritmo e harmonia, no entanto apesar de obedecer a tais princípios a execução ou escuta de uma peça musical pode causar uma sensação atemporal, um recorte no tempo cronológico, no qual perdemos a noção métrica desse tempo. Segundo Longo e Lopes:

“Retomando a fenomenologia, Kairós, caracterizada como relação de temporalidade, é uma vivência existencial do tempo, implica a percepção individual dos momentos, com aceitação e acolhimento da vida. É a dimensão do tempo que dá sentido ao vivido. E é através dessa vivência com o sentimento de fluidez do tempo que a mesma traz, que se dá o convencionamento do tempo, criando, então uma relação dita temporal.”

Quando falamos sobre presenciar ou vivenciar uma escuta musical, não há uma receita específica que enquadre como cada pessoa responderá ou irá reagir a tais estímulos. Pois cada ser apresenta um comportamento único diante do exposto, que vem em decorrência de diversas situações, como por exemplo experiência de vida, formação, ocupação, família, caráter, tipo de personalidade entre outros. A experiência é única como as sensações e o momento são.

O tal momento deve ser aproveitado ao máximo, pois quase que no mesmo instante que se apresenta já se torna passado, fazendo parte de uma possível construção para o futuro e significação e ressignificação do passado.

Encerro o texto com algumas considerações de Nietzsche (2003): “Quem não vive algo grande e elevado na vida, também não saberá interpretar algo grande no passado”.

Referências

AGAMBEN, G. O que é contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, CS. Argos, 2009

BRUSCIA K.E. Improvisational Models of Music Therapy. Charles C. Thomas Publisher: Illinois (USA), 1987.

BRUSCIA K. E. Definindo Musicoterapia. 2. ed. Rio de Janeiro: Enelivros, 2000.

CANDÉ, R. História Universal da Música. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

DEBERT, G. G. Velho. Terceira idade, idoso ou aposentado? Sobre diversos entendimentos acerca da velhice. Disponível Aqui. Acesso em 18/03/2016 às 17:05 horas.

LEINIG, C. E. A Música e a ciência se encontram: um estudo integrado entre a música, a ciência e a musicoterapia. Curitiba: Juruá, 2009.

LEITE, L. Do Simbólico ao Racional: Ensaio sobre a gênese da mitologia grega como introdução a filosofia. Disponível Aqui. Acesso em 27/09/2016 11:00 h.

LONGO, G. F. LOPES, R. G. C. Velhice: Iluminação perante a vida e o tempo. Disponível Aqui. Acesso em 14/03/2016 ás 18:32h.

MARTINS, J. C. O. AQUINO, C. A. B. et al. De Kairós a Kronos: metamorfoses do trabalho na linha do tempo. USP Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 2012, vol. 15, n. 2, p. 219-228. Disponível Aqui. Acesso em 27/09/2016 11:10 h.

MILLECCO, R. P.; BRANDÃO, M. R. E.; FILHO, L. A. M. É preciso cantar: Musicoterapia, Contos e Canções. Rio de Janeiro: Enelivros, 2001.

MUCIDA, A. Escrita de uma memória que não se apaga: Envelhecimento e velhice. Belo Horizonte MG: Autêntica, 2009

NIETZSCHE, F, Segunda Consideração Intempestiva: Da utilidade e desvantagem da história para a vida. Rio de Janeiro: Dumará, 2003.

OLIVEIRA, G. C.; LOPES V. R. S.; DAMASCENO, M. J. C. F.; SILVA e. M. A Contribuição da Musicoterapia na Saúde do Idoso. Cadernos Uni FOA Ed. nº 20 Dez. 2012.

* Rafael Ludovico Moreira – Mestrando em Gerontologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Especialista em Gestão de Recursos Humanos pela FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas) – 2014 e Bacharel em Musicoterapia pela FMU – 2013. Atua como musicoterapeuta na prevenção, tratamento e reabilitação de diversas doenças, experiência com musicoterapia organizacional, voltada para autoconhecimento e resolução de conflitos e experiência com musicoterapia em geriatria e gerontologia com ênfase em reabilitação e tratamento de demências, assessoria em musicoterapia. E-mail: rafael_terapia@hotmail.com

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