A conquista de viver mais exige sensibilizar gestores que envelhecer é um processo pessoal, mas também um direito fundamental do ser humano
Cora Cacilda de Menezes Medeiros (*)
O Século XX ficou marcado por importantes transformações nas áreas econômicas e sociais. Destacam-se os progressos científicos que, paralelamente, contribuíram com os avanços na área da saúde. Do ponto de vista social chama atenção as modificações na estrutura e na concepção das famílias: número reduzido de filhos e filhas, possibilidade oferecida pelo surgimento da pílula anticoncepcional – entre outros fatores, e a própria formação familiar, surgindo as denominações de famílias homoafetivas e mães solos, por exemplo.
A redução no número de filhos é, portanto, responsável pela queda da taxa de fertilidade, uma vez que é possível fazer a opção por um número bem menor de filhos (as) comparado às mães e avós de outrora. Outra mudança social importante é a participação das mulheres no mercado de trabalho, ocupando as mais diversas funções e investindo em suas formações profissionais. Todos esses processos, aliados a uma forte concentração urbana da população, reduziram drasticamente a moradia nas zonas rurais.
Esse contexto propiciou ao Século XXI ser denominado como o Século do Envelhecimento: fenômeno sem precedentes e irreversível, atingindo todas as classes sociais, porém de formas diversas, uma vez que existem várias velhices e não uma homogeneidade no processo de envelhecimento dos seres humanos.
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O envelhecimento de uma população precisa ser entendido como uma conquista de um povo, pois aponta para a melhoria de sua qualidade de vida. No entanto, ao mesmo tempo que a sociedade potencializa a longevidade, ela não se mostra preparada para cuidar dessa população. O que se verifica é uma necessidade premente de mudanças fundamentais nas ações e formas de como pensar o envelhecimento humano. Negar a pessoa idosa os seus valores e sua importância social é o mesmo que estimular nela a depressão, o isolamento e, em muitos, o desejo de morte, e permitir que aconteça a sua “morte social”.
Amparo legal
Durante muito tempo a política voltada para o segmento idoso foi exercida como filantropia e assistencialismo. Foi a época das Legiões de Assistência nos estados e municípios, além da caridade de algumas senhoras e do amparo das instituições religiosas. No entanto, essas formas – filantropia e assistencialismo não são benefícios legais. A partir da Constituição Federal de 1988 – a Constituição Cidadã, foi possível, com muita luta dos movimentos sociais ligados à causa da pessoa idosa e participação dessas próprias pessoas, o surgimento dos seus marcos legais: A Política Nacional do Idoso – PNI, de 1994 e o Estatuto da Pessoa Idosa – EPI, de 2003.
Apesar do aparato legal, aceitar o envelhecimento ainda é um problema hoje em dia para a maioria das pessoas. Nessa fase da vida o sujeito não é mais compatível com os valores pregados pela sociedade atual. Passa a dominar o imaginário social questões como: envelhecer é sempre um problema; velhice é sinônimo de doença; todo destino do velho e da velha é o adoecimento. Essas questões são atreladas a uma sociedade cujo seu maior valor é a juventude e a beleza. Ambas reforçadas pela necessidade de autonomia, independência e produtividade, como forma de manutenção do seu status na sociedade, agravado pelo consumismo exacerbado que impulsiona um mercado.
A velhice: da esfera privada aos espaços públicos
A transformação demográfica, porém, fez com que a velhice saísse da esfera privada e familiar e passasse a ocupar os espaços públicos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece, então, a década de 2020 como a Década do Envelhecimento Saudável.
No entanto, para que isso efetivamente aconteça serão necessárias mudanças fundamentais nas ações e no formato de como o envelhecimento é pensado. A forma como se chega à velhice reflete o acesso, ou não, a direitos fundamentais, que remete a oportunidades oferecidas ou negadas às pessoas ao longo do curso de vida. Sem esquecer que se trata de uma sociedade que tem como seu maior valor e referência a juventude.
A política pública no Brasil é pautada num cenário que reforça a ideia de um País Jovem e em um cenário sócio econômico desfavorável, cuja desigualdade, pobreza, exclusão e violência se integram e se potencializam, sobretudo nas periferias das cidades. Os gestores e os movimentos sociais são obrigados a disputas políticas e orçamentárias, uma vez que sem vontade política e sem financiamento não existe a possibilidade de implantação de novas políticas públicas, tão necessárias à causa do envelhecimento populacional. A própria sociedade e investidores ainda preferem crianças e o meio ambiente, não enxergando as necessidades que passam a existir diante do aumento da expectativa de vida e de pessoas cada vez mais longevas. A conquista de viver mais não pode ser descuidada.
Na atualidade, porém, inúmeros são os entraves para a efetivação do reconhecimento da Cidadania da Pessoa Idosa. Nesse contexto, destacam-se as regressões recentes dos direitos sociais e os interesses do capitalismo; o acesso às informações de forma desigual, principalmente no que tange a alta taxa de analfabetismo no segmento idoso e exclusão digital da pessoa idosa. Outro fator que compromete a compreensão das reais necessidades dessas pessoas é a sua representação, muito mais por representante técnico científico, do que por elas mesmas.
Outro aspecto que precisa ser considerado é o desafio do envelhecimento das minorias, ou seja, além de serem velhas algumas pessoas sofrem por sua orientação sexual, raça, cor ou por algum tipo de deficiência. Tudo isso, aliado a situações de exclusão territorial, da oferta desigual de oportunidades e serviços pelo Estado Brasileiro. Outro desafio é a insuficiência familiar, diante das novas configurações familiares e mesmo porque, a família, a sociedade, e os próprios idosos e as idosas não estão preparados para assumir a identidade do sujeito idoso.
De acordo com Giacomin (2012), o envelhecimento populacional desafia as famílias e a sociedade a encontrar soluções que são tanto legais quanto éticas, com vistas a promoção e a garantia dos direitos das pessoas mais velhas. E, também, segundo Faleiros (2007), a sociedade só se torna menos injusta se houver efetividade ao pacto na redução das desigualdades e iniquidades. Nesse sentido, se faz urgente na sociedade contemporânea e nos seus espaços de poder, mudanças estruturais visando conscientizar a coletividade de um modo geral, de que é preciso promover a conscientização da sociedade brasileira acerca dos direitos da população idosa e sensibilizar cada um dos gestores nas três esferas de poder que envelhecer é um processo pessoal único, mas também um direito fundamental da pessoa humana.
O que se constata, no entanto, é um Estado que não compreende o envelhecimento como conquista nem como um valor para a sociedade e suas ações e omissões ainda reforçam o discurso e a imagem do envelhecimento problema, doença e proximidade da morte, apenas. Ainda com o agravante de imputar à pessoa idosa a responsabilidade pela sua condição de fragilidade, que inúmeras vezes, infelizmente, existe. Em muitos casos, toleram o preconceito à pessoa idosa e à velhice e ainda desconhecem que grande parte das pessoas idosas é independente e preserva sua autonomia, apesar do descaso do Estado.
Torna-se urgente, em pleno século XXI, a revisão de conceitos discriminatórios e negativos, uma vez que as pessoas envelhecerão cada vez mais e em melhores condições de saúde. E o envelhecimento cobra a ampliação das políticas públicas e de uma Política Nacional de Cuidados. É necessário quebrar o silêncio e politizar o cuidado de idosos, como assinala Debert (2022).
Referências
GIACOMIN, K.C. Envelhecimento populacional e os desafios para as políticas públicas. In: BERZINS, M V; BORGES, M C (Org.). Políticas Públicas para um país que envelhece. São Paulo: Martinari, 2012, pp.19-44.
DEBERT G.G. Precisamos quebrar o silêncio e politizar o cuidado de idosos. FAPESP na Mídia. São Paulo, jul. 2022. Disponível em: https://namidia.fapesp.br/precisamos-quebrar-o-silencio-e-politizar-o-cuidado-de-idosos/394515.
FALEIROS, V. P. Cidadania e direitos da pessoa idosa. Brasília, n.20, p.35-61, jan/jun. 2007.
(*) Cora Cacilda de Menezes Medeiros – Servidora pública municipal, graduada em Administração de Empresas pela Universidade de Pernambuco – UPE, com especialidades em Gestão Pública também pela UPE e em Gerontologia pela Universidade Católica de Pernambuco. Possui vasta experiência em desenvolvimento urbano e em direitos humanos e ocupa o cargo de Gerente da Pessoa Idosa do Recife e integra a equipe de professores da Escola de Governo da Prefeitura do Recife. É membro da Coordenação Colegiada do Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa Idosa do Recife. Texto escrito no curso “Fragilidades: o envelhecimento sob a perspectiva da gerontologia social”, promovido pelo Espaço Longeviver/Portal do Envelhecimento, no segundo semestre de 2022. E-mail: cacildam@recife.pe.gov.br.
Foto destaque de Los Muertos Crew/pexels.