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Entrevista psicodramática – Luiz Contro, em busca da criação

gato café tendo como fundo uma tela e um homem careca

Com generosidade, Contro compartilhou seu processo de envelhecimento e a importância das relações afetivas.


Luiz Contro, psicólogo, psicodramatista, didata, supervisor e doutor em saúde coletiva, é uma figura de destaque no cenário do psicodrama brasileiro. Com um olhar crítico e refinado sobre a realidade social, Contro dedica sua vida a aprofundar a compreensão da psique humana e a desenvolver ferramentas para promover o bem-estar individual e coletivo.

Em seus cursos e livros, o autor compartilha suas experiências e conhecimentos de forma clara e acessível, inspirando gerações de psicoterapeutas. Sua obra, marcada pela intersecção entre psicodrama, literatura e arte, convida à reflexão sobre os desafios da contemporaneidade e oferece recursos para a construção de uma prática clínica mais humanizada e transformadora.

Ao longo da entrevista, Contro nos revelou um pouco mais de sua trajetória pessoal, marcada por uma busca constante por significado e por uma profunda conexão com a vida. Com generosidade, compartilhou seu processo de envelhecimento e a importância das relações afetivas.

Um convidado especial esteve presente em toda a conversa, o Café, evidenciando o papel fundamental que a afetividade desempenha na vida de Contro. Através de sua obra e de seu testemunho, o autor nos convida a celebrar a vida.

Aquecimento Inespecífico
Fui apresentada ao Café em uma conversa sobre ele ao redor da mesa.

Aquecimento Específico

Verso de Sérgio Perazzo:
“Que é o homem sem papéis?
Que é do homem sem papéis?
Que é o homem nos papéis?
Que pele é essa do homem, papéis?”

Silmara: Ao ler este verso, no aqui e agora, qual cena se constrói pensando no seu processo de envelhecimento?
Luiz: Teria que ser uma cena que tem a ver com este processo, por se tratar de uma construção. Assim como a gente foi construindo a nossa própria infância, ainda não tínhamos tanta consciência, pois esta vai aumentando com o passar da vida. Quando cheguei na velhice, veio um “opa, estou entrando numa nova fase!”. Percebi que ela é uma consequência de um processo. Uma cena que compusesse isso? Talvez um  tijolinho de cada vez, se tornando uma construção, um processo que dê conta de olhar para esse momento que é novo. Vejo a mudança nas últimas décadas. Na minha adolescência, quando eu olhava uma pessoa mais velha, em torno de 50 anos, era alguém ali, de chinelinho, assistindo televisão. Hoje é algo totalmente diferente. A gente continua ativo, com vivacidade, desejando, criando, produzindo, querendo conhecer. Me lembrei de um livro de poesias que eu fiz, em função de um tema que critica o sistema neoliberal da utilidade, assim como fizeram Paulo Leminski e Manoel de Barros. O título desse livro é Utensílios  Poéticos, reafirmando a utilidade da arte. Nele tenho a poesia:

Velho Ser
Desvelar o velho
em si
para não velar
o ser
ao envelhecer.

Tem a ver com descobrir quem eu sou neste momento. Não que eu queira continuar correndo atrás de uma utilidade, mas quero poder desfrutar esse momento, poder viver da melhor forma possível.

Dramatização

Para um envelhecimento saudável, o fortalecimento do ego é essencial. Na teoria do psicodrama isso é o mais avaliado, pois só depois do reconhecimento do Eu é que podemos avançar para o reconhecimento do Tu. Durante o curso da vida, o que foi primordial para o fortalecimento do seu Eu?
Esse fortalecimento do Eu, gosto de chamar de processo de subjetivação e acho que tudo vai construindo a subjetivação da gente. Uma conversa como essa, as experiências, as relações, tudo isso contribui para uma subjetivação. Mas, claro que depende da história de cada um. Algumas coisas ficam mais acentuadas que outras. No meu caso, eu nasci em uma cidade pequena que se chama Adamantina, hoje tem em torno 30 mil habitantes. Lá vivi até os 18 anos. Eu jogava futebol na rua de terra, a gente se encontrava no clube para nadar e o ponto de encontro era a única sorveteria que tinha na cidade. Íamos a pé para escola. Uma vida comunitária, todo mundo se conhecia. Tive uma infância e uma adolescência muito saudável, cercada por atividades físicas e brincadeiras.

Tive marcas muito fortes que também construíram essa minha subjetividade. Por exemplo: perdi o meu pai com dois anos de idade, praticamente não o conheci. Com a morte do meu pai, meu irmão mais velho assumiu a família financeiramente. Éramos cinco e ele teve que parar a faculdade para cuidar da família. Cresci ouvindo o planejamento de vida que ele tinha para mim, que pagaria meus estudos e que eu seria arquiteto, pois desenhava bem. Aos meus 12 anos, tudo isso mudou repentinamente com a morte do meu irmão em um acidente. Em seguida, ainda perdi uma prima e uma sobrinha.

A questão da morte sempre esteve presente desde muito cedo e foi também um ingrediente muito presente nesse processo de subjetivação, fez com que eu tentasse entender a morte e a vida. Eu era o caçula e meus irmãos mais velhos já estavam vivendo as suas vidas. Buscando uma compreensão da vida, fui ler livros de yoga, meditação e espiritismo. Minha mãe era espírita. Outro ingrediente foi que, aos 11 anos, comecei a estudar violão e me acompanha até hoje. O esporte e a música me trouxeram disciplina, organização e dedicação. Eu estudava uma hora por dia e me apresentava ao professor no quintal da casa dele. Mais adiante, vieram a Psicologia e o Psicodrama. Me mudei para São Paulo e depois para Campinas, uma vida nova. Tudo tem uma relação com as coisas e com as pessoas, auxiliando em meu processo.

Há 20 anos você lançou o livro Nos Jardins do Psicodrama, trazendo um retrato social da pós-modernidade. Quem é o Luiz, filho deste tempo? Por qual narrativa se guia?
Neste caso lembro de Fernando Pessoa. Ele traz a questão de que somos atravessados por muitos personagens em uma forma de olhar por diferentes lados, olhar o mundo na complexidade que ele tem. Não dá mais para se pautar na ideia de certo ou errado, ou bem e mal, isso é reduzir demais a vida. Daí vem a ideia do meu livro Nós e Nossos Personagens, somos muitos. O Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, diz: “Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim”. A gente pode pensar até em termos de papéis, que meu lado profissional obviamente não está tão distinto assim o tempo todo. O que sou como pessoa e os meus valores, naturalmente, conduzem o trabalho. Às vezes a gente se sente frente a este desafio de se perguntar: Qual é o melhor caminho? Qual é a melhor saída para essa situação?

Outro que me guia é Nietzsche, que fazia a referência: se você busca algo para te referendar em suas escolhas, escolha aquilo que promova vida, aquilo que faz brotar, que faz germinar, algo que seja positivo. Vejo isso também na interlocução que faço há 15 anos entre psicodrama e literatura. Como Clarice Lispector que, em suas obras, chama a atenção para o ovo, para a criança, para o diferente, para o germinar, tentando entender onde está a vida para além das opressões. Busco identificar onde pulsa a vida e me guiar por esse norte, como a canção do Titãs – O Pulso Ainda Pulsa, mesmo com as limitações físicas naturais da vida. Uma outra questão que tem total relação é a da criação. Criar é justamente isso, dar vida. Por isso a importância da arte, da música e da literatura.

“Café, Café, você é um gato, mas parece que não é…”. Esse é um trecho da música que compôs em homenagem ao seu gato. Em uma tomada de papel, me responda sendo o Café: Quem é o Luiz?
O Luiz é muito carinhoso, brincalhão e companheiro, mas ele também dá bronca quando precisa e me coloca limites. Mas sinto que ele cuida de mim e me ama. É um amor recíproco. Quando estamos em casa, a gente fica procurando um pelo outro. Muitas vezes eu estou lá fora na varanda e a porta fechada. O Luiz está na mesa jantando. Sem me ver, ele lembra de mim e vem me buscar. A Rita, esposa do Luiz, diz: Vocês têm transmissão de pensamentos. Estamos há 17 anos juntos e temos toda uma história.

Estive presente em seu curso num dia em que tinha como preocupação o bem-estar do Café, após o médico veterinário ter diagnosticado que ele estava perdendo a autonomia fisiológica. Você estava a sentir a finitude dele. Como foi esse momento pra você?
Esse momento me colocou de novo frente à morte. Dois veterinários e dois ortopedistas deram diagnóstico fechado, ou seja, que não teriam condições dele sobreviver. Para mais uma tentativa o levamos ao neurologista, já pensando que seria um caso de eutanasia. Lembro-me da cena: eu com ele no colo, me despedindo dele e chorando. Até pedi pro jardineiro fazer uma cova no jardim. O neurologista deu uma alternativa que poderia auxiliá-lo a melhorar. Seguimos o prescrito. Depois disso tudo, ele ainda ficou internado por dez dias, momento de angústia. Quando voltei do congresso, ele começou a recuperar a autonomia, só precisamos cortar a cauda dele. A questão da morte dessa vez foi diferente, como se eu tivesse ganho um tempo a mais, o café renasceu. Eu, que já tinha me despedido imaginando estar sem ele, agora olho pra varanda e ele está lá. Eu chego e ele vem. Isso me traz uma reafirmação visceral de querer aproveitar todos os momentos em que estamos juntos. Talvez ele também esteja sentindo isso. Percebo ele ainda mais apegado. Da mesma forma que a gente desenvolve relações télicas com as pessoas, assim acontece com os animais. A Clarice Lispector, quando fala do estrangeiro, ela fala de incluir tudo que tem vida: animais e plantas, os viventes que estão à margem da sociedade, para assim respeitarmos as formas de vida.

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Aproveitando o tema, em seu texto O Psicodrama e a Política de Institucionalização de Verdades você cita Nietzsche ao tratar que a consciência da morte é uma ferida trágica. A fase da velhice é a última etapa de vida, no imaginário social temida pela aproximação da morte. Pra você, como é o pensar em sua finitude?
“Aperto passo / Passo perto do fim”. Esse é um trecho de um poema meu que lembra essa questão. Acho que essa consciência da morte provoca em mim a necessidade e o desejo de estar mais próximo da vida, e isso é criar. No começo desse ano passei por uma cirurgia. Antes de ser operado me peguei fazendo músicas, coisa que eu tinha feito lá na adolescência. A primeira canção foi justamente a do Café. Na sequência vieram outras. Diante da possibilidade da morte sinto uma provocação sobre o viver a vida, viver o instante.
Mas tem uma contradição no poema: não vale a pena sair correndo, porque senão não vivo a vida, só passo por ela. Sei que a morte está por aqui, em algum momento ela chegará. Troco olhares com ela e vou lidando com isso. Vejo que é um tema mais presente nessa fase da vida. Estou com 63 anos e, às vezes, em nossas conversas com amigos, é que percebemos que estamos envelhecendo.

Dentro do psicodrama sabemos da importância de se relacionar. Em sua composição Meu Silêncio, temos: “Enquanto falas / me escuto / e me toco / que não me escutas / então calo…eu quero troca, é o que digo…”. Você viveu situação parecida?
Sim, vivi ao reencontrar um grande amigo. Quando sentamos para conversar, ele falou, falou e falou sobre ele. Não perguntou nada sobre mim. Como ele não estava me escutando, passei a me escutar e me perguntar: O que estou fazendo aqui? Assim não está legal, preciso sair dessa situação. Não está havendo uma troca. Aí eu dei a desculpa de ir ao banheiro. Me ausentei, e no celular escrevi a letra toda. Ele continua sendo meu amigo. A gente tem outros momentos de troca. Acho que isso representa a experiência de muitas pessoas. Quem nunca se viu numa situação como essa? Isso hoje é muito presente em nossa sociedade. Como diz o refrão da música: Eu quero troca! Essa troca me ajuda a criar subjetividade.

Em seu livro Palavras Inquietantes você traz a literatura e a palavra para a ação terapêutica. Pensando em seu envelhecimento, qual palavra representaria?
Driblar. Antes eu jogava futebol, mas parei devido a problemas nos joelhos. Passei a nadar, mas também parei, pois operei o ombro. Agora sou ciclista e chego a rodar 60 km em uma única viagem. Um dia desses eu estava voltando de uma pedalada e em paralelo se aproximou de mim outro ciclista. Durante a conversa, declarou ter 74 anos. Quando fomos calcular o quanto pedalamos, constatamos que ele havia saído quarenta e cinco minutos mais tarde que eu e rodado 14 quilômetros a mais do que eu. Isso tudo com uma diferença de 11 anos mais velho que eu. Por isso, a palavra é driblar. A gente vai driblando, a gente vai criando, vai buscando caminhos alternativos, a chama da vida.

Em seus estudos de literatura e do psicodrama você traz o “espelho” dos autores Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. No psicodrama este objeto se torna uma técnica em conceito. Em qual espelho na vida você se reconheceu?
Tem o de meu pai, que, como disse anteriormente, perdi aos dois anos de idade. Eu me vi naturalmente olhando para outros homens e buscando referências masculinas. Me lembro que lá em Adamantina tinha um motorista de táxi que, ao vê-lo, eu falava: “ó lá papai” e minha mãe dava risada e respondia que realmente ele era parecido com meu pai. Tive outros modelos masculinos, primos e professores. Aqui em Campinas tenho o Luis Falivene que foi meu professor e terapeuta, uma pessoa muito importante em minha vida. Moysés Aguiar também foi outra figura importante, meio que um irmão mais velho pra mim. Outro espelho que fui invertendo papéis foi com meu filho/enteado Bruno quando, aos cinco anos de idade, me imitava com as questões das regras da casa. Aí entrei no quarto dele e comecei a imitá-lo também, para que ele visse o que ele causava em mim. Não precisamos falar mais nada, tudo ficou subentendido. Essa vivência é uma experiência espetacular, onde trocamos de posição, construindo o mundo.

Em sua canção Cronos e Kairós, se refere ao tempo. Fazendo uma analogia à sua obra Nós e Nossos Personagens, qual personagem usaria/criaria para conciliá-los?
A figura Cronos é o tempo que vai passando, e Kairós é o tempo da experiência. À medida que o tempo cronológico avança, aperta o passo e vem a necessidade de valorizar bastante o kairós, que é o tempo da intensidade. A figura que me vem é alguém meditando, sentado, entrando em contato com um lado mais sensitivo. A meditação na minha adolescência foi algo que me salvou. Durante a meditação, o tempo cronológico não para, mas o kairós parece que conseguimos pará-lo de alguma forma e ficar vivendo a situação, o pulsar, o sentir da vida. Outro personagem, seria a de uma pessoa pintando uma tela, compondo uma música ou esculpindo um material. Tudo isso é um tipo de meditação ativa: o tempo passa mas tem uma intensidade.

Compartilhar

Nesse compartilhar, quero te agradecer, pois é mais um momento dentro desse processo do envelhecimento, de parar e olhar para isso, refletir, se perceber nesse processo. Foi muito interessante poder partilhar isso com alguém que possa aproveitar também.

Para encerrar nossa conversa, fica um poema:

Maquinaria Corrosiva
o pó da tralha
entope a veia
o livro em teia
não ateia o circo
soletrar o obsoleto
tira o sol das letras
gira a roda
movida pela moda
perde-se o sumo
se em função do consumo
repete, repete, repete
enquanto a vida apodrece
debaixo do carpete
(Luiz Contro)

Conheça mais:
https://www.instagram.com/luizcontro
https://www.youtube.com/@LuizContro-m%C3%BAsicas

Fotos: arquivo pessoal


Silmara Simmelink

Psicodramatista formada pela Associação Brasileira de Psicodrama e Sociodrama. Psicóloga graduada pela Universidade São Judas Tadeu. Especialista em Gerontologia pelo Albert Einstein e fez curso de extensão da PUC-SP de Fragilidades na Velhice: Gerontologia Social e Atendimento. Pós graduada em psicanálise pela SBPI e Sociopsicologia pela Fundação Escola de Sociologia e Política de SP. Atua em clínica com abordagem psicodramática e desenvolve oficinas terapêuticas com grupos de idosos. É consultora em Desenvolvimento Humano e especialista em psicologia organizacional titulada pelo CRP/SP. E-mail: ssimmel@gmail.com

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