Só nós três em casa, então o diálogo sobre a morte foi surgindo devagarinho.
— Pai, você está pronto para morrer?
— Sim, estou pronto. Minha vida foi rica, gostei de tudo que eu fiz. Quando minha hora chegar, irei feliz.
— Então, nem irei chorar quando você morrer.
Por incrível que pareça, o diálogo acima aconteceu. Meu pai havia se recuperado de uma cirurgia para a retirada de um tumor no intestino e se preparava para uma segunda cirurgia, pois um segundo tumor havia surgido. Era domingo e, como muitas vezes aconteceu nos anos finais de sua vida, eu fui almoçar com ele.
Estávamos sentados em torno de uma mesa no quintal, próximo à janela da cozinha através da qual minha mãe nos passava alguns tira-gostos, porque ele não dispensava sua cachacinha “para abrir o apetite” nos almoços dominicais. Só nós três em casa, então o diálogo sobre a morte foi surgindo devagarinho. Como ele não se furtava a responder o que eu perguntava, o diálogo foi crescendo.
Não chorei em sua morte, mas a partir desse diálogo teve início minha jornada de preparação interna para o seu dia final, que aconteceu meses depois da tal segunda cirurgia. Essa preparação interna me permitiu cuidar dele em seu estado terminal e estar presente em seu último suspiro, com o dedo em seu pescoço sentindo a última pulsação de sua artéria. Era um trinta e um de dezembro e, nesse dia, quando perguntado sobre o que eu faria naquela noite festiva, eu disse à minha companheira:
CONFIRA TAMBÉM:
— Irei ficar com meu pai, pois ele morre hoje.
— Como você sabe?
— Eu sei, ele me disse.
Sim, meu pai havia se preparado para sua própria morte em vários detalhes. Nos oito meses de agonia e dor entre o fracasso da segunda cirurgia, em abril, até o dia de seu falecimento, em dezembro, ele teve uma palavra de aconselhamento e de alegria para cada pessoa que o visitou, principalmente para seus nove filhos. Sua preparação se estendeu até aos detalhes práticos do sepultamento. Caixão, carro funerário, cerimonial com livro de presença e uma moça bonita cuidando de tudo no velório. Tudo previamente pago.
Em minha jornada de preparação para a morte e a morte de meu pai vivi várias experiências diferentes. Todas elas com o mesmo foco, o de querer entender a morte e não sofrer com ela. Li vários livros sobre a morte (entre eles A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver, de Ana Claudia Quintana Arantes; As Intermitências da Morte, de José Saramago; e Pirotécnico Zacarias, de Murilo Rubião), frequentei Centros Espíritas e Terreiros de Umbanda, tive uma conversa séria com o Preto Velho, que durou mais de uma hora, para desespero dos presentes. Mas foi em um banho de mar que tive a resposta procurada.
Trôpego no fundo do mar entrei.
Na dança com golfinhos solicitei
à vida, em ciclos, que ele viva
sua morte que chega, ativa.
A partir desse mergulho eu tive serenidade para escutar sua voz que sumia, falar palavras de aconchego, narrar histórias que o conduziam a algumas viagens imaginárias a lugares desconhecidos, ou conhecidos, e estar presente nos momentos de cuidado.
E quanto à minha morte? Ela vem, cada dia que passa mais se aproxima. Já vivi experiências de risco, como um ônibus, na contramão, surgindo em minha frente em uma curva e eu tive poucos segundos para reagir e sair de sua frente e assistir, pelo retrovisor, sua colisão com o veículo de trás. Ou quando um barranco, em tempos de chuva, caiu atrás de meu carro, um segundo após minha passagem. Ou quando um caminhão sem freio em uma descida forte veio em minha direção e o motorista, ao me ver a pé na estrada, o jogou no barranco bem a meu lado. Estes sustos sempre nos deixam em alerta e nos fazem pensar em viver dias melhores.
Hoje, consultando meus arquivos, verifiquei que já escrevi muito sobre a morte, mas a morte como passagem, pois ela não é oposição à vida. A morte é apenas uma mudança de ciclo, ou uma mudança de fase dos jogos de vídeo game. Ela vem, sim, mas em forma de poesia.
A poesia existe
para nos fazer eternos:
enfrentar o mistério da morte
compreender o trágico da vida.
Registros de humanidades.
Mas, fica sempre a pergunta: e se o fim for amanhã? O meu fim, especificamente?
Um fandango nem sempre pensa na morte
nem espera sentado por ela.
Ele sonha com a vida, curte suas incertezas
para se lembrar da certeza do fim!
Foto de Fatih Börekçi/pexels.