As pessoas insistem que o casal mude para a cidade. Afinal, não é prudente uma senhora e um senhor de 76 anos morarem sozinhos num lugar tão isolado. A elas, dona Maria explica: “Ninguém aqui tá só. Tamos acompanhados com Deus e as almas”.
Ana Aranha. Texto e Fotos *
Hoje, fora a casa de dona Maria e seu Bento, todas as outras estão vazias. Alguns moradores rumaram ao Norte, outros ficaram até o fim da vida e lá estão, enterrados sob o chão batido ao redor das igrejas. Quando dona Maria anda entre os muitos crucifixos – sempre com os pés descalços quando pisando no chão da vila – vai lembrando dos nomes e das histórias de quem viveu ali.
Mas, ao contrário do que pode parecer para nós, forasteiros, o lugar é cheio de vida. Uma vida que hoje quase não se vê. Dona Maria e seu Bento mantêm as tradições: batem o o sino da igreja, cantam os benditos e rezam as penitências todo sábado, domingo e segunda-feira – dias em que é proibido trabalhar. Às vezes, os rituais são acompanhados pela “familinha”, como ela chama os seis filhos, 24 netos e oito bisnetos que moram na cidade. Às vezes não. Mas o casal não se sente só. Dona Maria e seu Bento são convictos de que o falecido padrinho espiritual da comunidade Manuel Borges dos Santos está presente, olhando por eles e pelas almas da vila.
Manuel Borges era um influente líder religioso na região. Há quem diga que, não fosse sua morte precipitada por um acidente, o beato formaria uma comunidade similar à Canudos de Antônio Conselheiro.
Dona Maria enche os olhos quando fala do seu padinho. Assombra-se ao lembrar da capacidade dele em adivinhar o que os fiéis faziam. “Se tu namorasse com teu marido lá em Juazeiro do Norte e chegasse aqui pra pedir a benção, ele não pegava na sua mão. Fazia a cruz de longe. Ele sabia tudo, não era como esses homens que não sabem nada do nosso coração”.
Foi ele que cavou o buraco no topo do morro onde, até hoje, há água o ano todo, até nos períodos de seca. Dona Maria conta que a água é “de milagre” e já curou muita gente, como um de seus filhos que nasceu entrevado. Perto da fonte, fica uma cruz de madeira e uma Igreja, ambas cercadas por vista exuberante da caatinga e um vento redentor. Manuel Borges foi o único enterrado lá em cima, sua sepultura ornada por uma pequena capela.
A subida é íngreme sobre pedras lisas e sob o sol impiedoso do Tocantins – um teste de resistência para os seres sedentários da cidade. Na volta, dona Maria ri da minha cara vermelha e acode com água e almoço. Com mais que o dobro da minha idade e o triplo de músculos na perna, ela sobe o mesmo morro enquanto cantarola o bendito.
Ela vive uma vida larga em histórias porque não limita seu aprendizado aos ensinamentos do dia. “Meu padinho falou que não há sonho perdido. Se você sonha um sonho ruim é porque seu espírito passou naquela ruindade e você ficou sabendo. Se foi uma coisa boa, é porque seu espírito encarnou naquela matéria e você ficou sabendo”.
Às vezes ela acorda mais sabida e o povo duvida, chamam suas ideias de “variaridades” – qualidade de quem está “variando”. Ela fica ofendida. Dona Maria não sabe ler ou escrever (nunca pisou numa escola), mas se orgulha da cabeça onde guarda com propriedade a história da sua vila e uma miríade de benditos e rezas que podem estender-se por horas.
Quando foi convidada pelo padre para rezar um dos benditos que só ela sabe, na igreja católica da cidade, as devotas se surpreenderam: “Você tem muita coragem, eu não dou conta de rezar sozinha um bendito desse tamanho”. Ao que dona Maria respondeu: “você não tem cabeça não, mulher?”.
A cidade de cinco mil habitantes, a cerca de 4 quilômetros da vila dos romeiros, foi oficialmente criada em 1989 com o título de Aragominas. Mas os moradores não reconhecem esse nome. Na região, todos chamam o local de “Pé do Morro”. As histórias de dona Maria podem parecer distantes do mundo em que a maioria das pessoas vive hoje, mas ela tem mais lastro de realidade do que a nomenclatura oficial inventada pelos governantes.
Para fechar a entrevista (ou a conversa, que é uma das palavras de que ela mais gosta), Dona Maria rezou um bendito e encerrou com as seguintes palavras: “Se vocês tiverem acreditando nessa conversa, vocês levam e conversam lá por onde andarem”.
Não travei conversa com as outras almas da vila dos romeiros, nem me tornei uma pessoa mais ou menos religiosa ao conhecer o local. Mas saí de lá carregando uma certeza: eu acredito em dona Maria. Se, daqui a algum tempo, as pessoas que conversam tanto pela “nuvem virtual” duvidarem que um ser tão especial pisou na terra, a prova está aqui. Registrada neste texto que termina com um convite para ouvir o bendito de “Nossa Senhora da Luz”, embalado pela única voz que sabe rezá-lo.
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* Ana Aranha é repórter apaixonada pelo ofício de contar histórias. Trabalhou na revista “Época”, na agência “Pública” e colaborou para diversos veículos, como o jornal inglês “The Guardian”. Tem 11 prêmios de jornalismo. Para o blog blog 3 por 4, conta as histórias de quem vive o cotidiano da notícia, mas nem sempre ganha as páginas dos jornais. Blog: https://br.noticias.yahoo.com/blogs/3-por-4/dona-maria-e-almas-152434556.html#more-id
Fonte: OutrasPalavras. Disponível Aqui. Acesso em 02/10/2013.