E nesse momento me tornei aprendiz grata, grata por ter passado momentos como esses com a Dona Maria e com a Dona Ester, e grata por ainda ter o contato com uma senhora de 100 anos e 2 meses que resgatou lembranças de meus antepassados, lembranças que também fizeram parte da tradição de minha família.
Durante essa tarde de conversas, surge a lembrança de alguns versinhos que dona Maria aprendera na escola quando criança. Ela recita alguns e percebo que fica toda feliz com os elogios em relação a sua memória e a forma com que declama os versos.
Ao retornar à casa de minha prima, começo a lembrar-me com muito carinho da figura simpática e “cheia de vida” daquela senhora de 100 anos e 2 meses, totalmente lúcida e com uma memória de dar inveja a qualquer um. Por sua vez, essa lembrança remete-me a um trecho do livro de Ecléa Bosi, “Memória e sociedade: Lembranças de Velhos”, no qual afirma que “Hoje fala-se tanto em criatividade… mas onde estão as brincadeiras, os jogos, os cantos e danças de outrora? Nas lembranças de velhos aparecem e nos surpreendem pela sua riqueza. .E foram por meio dessas lembranças de Dona Maria, que pude ouvir, com direito a gestos e uma verdadeira atuação dramática e teatral, a narração de algumas dessas riquezas, alguns dos versos mais lindos e sinceros que já ouvi em toda minha vida.
“O narrador está presente ao lado do ouvinte. Suas mãos, experimentadas do trabalho, fazem gestos que sustentam história, que dão asas aos fatos principiados pela sua voz. Tira segredos e lições que estavam dentro das coisas, faz uma sopa deliciosa das pedras do chão, como no conto da Carochinha. A arte de narrar é uma relação alma, olho e mão: Assim transforma o narrador sua matéria, a vida humana”. (Ecléa Bosi)
Um dia após minha primeira visita, fui surpreendida com um convite maravilhoso, feito pela Dona Ester, nora de dona Maria, para tomar um café da tarde com as duas. Durante essa visita, dirigi-me a Dona Maria e pedi autorização para que gravasse alguns de seus versinhos para que eu pudesse publicar no Portal do Envelhecimento. Inicialmente, ela ficou receosa, mas por fim me disse segura e certa de si mesma: “Pode gravar, mas filme e tire foto também”, e com o maior orgulho declamou alguns desses tesouros que não pude guardar apenas para mim, e resolvi compartilhar com todos vocês, leitores:
“Certo dia a coruja encontrou-se com o gavião.
– Aonde vai caro senhor?
Assim dizendo sorria:
– Vou aos filhotes nos ninhos, para matar minha fome,
Pois desde anteontem de tarde que o pobre gavião não come
– Ah senhor, por favor, não coma meus filhinhos,
eles são tão bonitinhos, é o fruto do meu amor.
Mas o gavião come o filhote que mais feio lhe parece,
evitando que no meio deles a coruja estivesse.
Quando voltou a coruja, ai que dor na alma, que frio!
Não encontrou seus filhinhos, o ninho estava vazio.
E louca, desesperada, com o peito cheio de dor, tombou no solo gritando:
– Gavião traidor, oh traidor”
“Quando eu nasci, não havia mais nem tronos, nem escravos,
a pátria livre sorria, terra de herói e de bravos.
Oh quantas felicidades eu sinto no meu coração,
sou livre da liberdade, não conheci a escravidão.
Já era republicano meu país quando nasci,
e o povo… o povo por soberano, sempre, sempre os conheci”
“Quatro e meia da tarde, quando Dom Pedro chegou,
na colina do Ipiranga, Independência gritou.
Este grito como sabe, não foi dado assim a toa,
pois queriam que Dom Pedro voltasse para Lisboa,
queriam ver o Brasil no estado colonial,
mas a regência anulou o trabalho principal.
E foi a 7 de Setembro que Dom Pedro numa viagem,
recebeu esta notícia dizendo ao povo:
– Coragem. Palpita-lhe o coração, montando no seu cavalo,
com sua espada na mão, grita:
– Independência ou
E ressurgiu morte livre a nação.”
E por fim, deixo um verso, o qual no momento em que dona Maria declamou, mexeu com as minhas memórias, uma vez que me trouxe lembranças da minha infância, pois era parte das narrações e brincadeiras que meu bisavô fazia comigo nas férias. E nesse momento, como disse Bosi em seu livro, tornei-me uma aprendiz grata, grata por ter passado momentos como esses com a Dona Maria e com a Dona Ester, e grata por ainda ter o contato com uma senhora de 100 anos e 2 meses que resgatou lembranças de meus antepassados, lembranças que também fizeram parte da tradição de minha família, e que se depender de mim irão ser passadas para as próximas gerações.
“Cadê o toucinho que estava aqui?
O gato comeu
Cadê o gato?
Foi pro mato
Cadê o mato?
O fogo queimou
Cadê o fogo?
A água apagou
Cadê a água?
O boi bebeu
Cadê o boi?
Foi puxar trigo
Cadê o trigo?
A galinha comeu
Cadê a galinha?
Foi botar ovo
Cadê o ovo?
O padre comeu
Cadê o padre?
Foi a missa
Cadê a missa?
A missa acabou”
Referências
BOSI, E. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. 3a ed. São Paulo, Companhia das Letras, 1994