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Dona Lurdes: só fui vivendo…

Dona Lurdes, 90 anos, é cheia de energia e disposição para cuidar de si mesma e de sua casa, onde mora sozinha desde que ficou viúva, há 21 anos.

Kátia Roiphe (*)

 

Ficar de braços cruzados esperando a morte chegar não é comigo. E se ela demora?

É com essa convicção que d. Lurdes Bel Corso Caruso completará 91 anos no próximo dia 2 de janeiro, cheia de energia e disposição para cuidar de si mesma e de sua casa, onde mora sozinha desde que ficou viúva, há 21 anos.

Nascida em Santa Rita do Passaquatro, São Paulo, veio para São Paulo pela primeira vez aos 7 anos para morar com uma família de mais recursos, já que a vida no interior ao lado de seus 9 irmãos não era nada fácil. Ao menos era essa a ideia de seus pais, que achavam que a menina seria tratada como mais uma filha pelo casal de amigos, mas não foi exatamente o que aconteceu: a pequena Lurdes tornou-se auxiliar de serviços gerais e passadeira. Para ajudar a alcançar a tábua de passar roupa faziam a gentileza de colocar um caixote. Já para as recorrentes queimaduras no braço nada podiam fazer – e aqui é bom lembrar que naquele tempo os ferros eram pesadíssimos, incompatíveis com a “força” de uma criança. Não recorda exatamente o motivo que a fez voltar para a casa dos pais, mas lembra que a mãe adotiva, ao se despedir apenas disse, passando o dedo pelo móvel: – você vai embora sem nem ao menos tirar o pó do piano?

Voltou para o interior, estudou até completar o ensino fundamental l. Aos 13, veio definitivamente para São Paulo, desta vez com toda a família, de mala e cuia, em busca de oportunidades. Logo começou a trabalhar, trabalho pesado numa tecelagem longe de sua casa. O trajeto era feito a pé e por conta disso era a última a chegar em casa. Depois de passar o dia todo somente com um pão e uma fatia de mortadela, não raro, encontrava as panelas do jantar já vazias. Nos tempos da guerra era ainda pior por conta do racionamento de alimentos.

Mais tarde, fez um curso técnico de corte e costura e este se tornou seu ofício. Formou-se com nota máxima, foi elogiada até por costureiros famosos pelo seu capricho que avaliavam seu trabalho analisando o avesso das peças. Impecável.

Casou-se aos 21, teve 4 filhos. Levava e buscava os filhos na escola a pé. Às vezes, fazia o trajeto de manhã e à tarde – e quem conhece a Freguesia do Ó, bairro onde reside até hoje, sabe quanto morro tem!

O marido não permitia que trabalhasse fora, então d. Lurdes costurava em casa mesmo. Para ajudar nas despesas. E cuidava da casa. E ajudava os filhos nos deveres escolares, muitas vezes estudando seus livros já bem tarde da noite, depois de colocá-los na cama.

Com esforço, juntaram dinheiro e construíram uma casa, uma boa casa, onde mora até hoje. Três de seus filhos concluíram o ensino superior e são professores, a outra só não fez faculdade porque decidiu se dedicar à pintura e ao artesanato.

Dorme cedo, acorda cedo.

O que a faz sair da cama todas as manhãs? – pergunto.

– Ué, se eu não me levantar pra fazer meu café não como!

Cozinhar não é seu forte, mas segundo sua filha é muito boa cozinheira. Faz a massa da lasanha de domingo, assim mesmo, na máquina! Faz também o pão de mel que alegra os 10 netos e 6 bisnetos.

Faz crochê, eu vi suas toalhas de pontos elaborados, daqueles que exigem contagem e atenção constantes para não errar o desenho, como a toalha de crochê da mesa da foto, uma de suas obras de arte.

Dia desses, passei cedinho em frente à sua casa e já estava com a mangueira e a vassoura na mão lavando o quintal. Era véspera de carnaval e dedicaria a tarde para a confecção das fantasias de uma das netas.

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A máquina de costura continua sendo sua grande distração. Todas as tardes, depois de um breve cochilo pós almoço, se enfia no quarto de costura e… brinca. É assim que ela fala. Recentemente ganhou uma máquina de overloque, seu mais novo brinquedo. Foi ao Brás, comprou por 10 reais um retalho de malha e fez um pijama para uma das filhas e uma camisola para a outra.

– Por 10 reais, você acredita, menina?

Acredito, ô se acredito!

Dona Lurdes é a aluna mais velha de um grupo de mulheres que se reúne semanalmente no salão da igreja do bairro. Dia desses, quando fui explicar um exercício de alongamento coloquei minha perna estendida sobre uma cadeira para que pudessem ver melhor. Quando olhei para o lado, lá estava ela imitando o movimento, sem qualquer dificuldade! Todas riram.

Doenças só as da infância, aquelas que todos tinham – tosse comprida, sarampo, catapora. Há mais de 20 anos uma inflamação do ciático a deixou de molho por um mês. E mais nada.

Conta com orgulho que hasteou a bandeira do Brasil no barco que fazia o passeio pelo mar da Galileia numa viagem com o grupo da igreja, há 5 anos, honra concedida ao mais velho da embarcação.

Pensava viver tanto? – Não, só fui vivendo…

De senso prático incomum, só dorme depois de saber de toda a família, para quem mantém-se útil e, acima de tudo, importante.

Quer conhecer Viena.

Se faltou alguma coisa? – Ah, queria ter estudado mais.

E gostaria de aprender piano, aquele que deixou recoberto de pó sem nem ao menos ter tocado uma única tecla.

 

(*) Kátia Roiphe (texto e fotos) é graduada em Educação Física, com especialização em fisiologia do exercício, treinamento personalizado, massagem terapêutica e reflexologia. Atua em centros comunitários e em residências, atendendo velhos em grupo ou individualmente, na cidade de São Paulo. É editora do Blog http://koisasdekatia.blogspot.com/?m=1. E-mail: kroiphe@hotmail.com. 

 

 

 

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