Há mais de dez anos, o qüinquagenário senhor Cantoni sofre de dores nas panturrilhas. O diagnóstico, a princípio, parecia fácil: o hemograma mostrou alteração em um valor de referência, indicando desgaste muscular. Preparando-se para o pior, o médico pensou tratar-se provavelmente de uma doença muscular crônica. Mas, passado algum tempo, o valor voltou ao normal. Então, radiografias do tórax revelaram anomalia em uma vértebra.
Chiara Palmerini *
O ortopedista concluiu ser esta a causa das dores. Entretanto, trações, manipulações e fisioterapia não trouxeram benefício algum. Pelo contrário, às dores acrescentou-se um incômodo formigamento. As veias das pernas, examinadas por um cirurgião vascular, estavam em ordem. Foi quando entrou em cena o neurologista, que falou de uma misteriosa “miopatia autônoma”. O caso parecia encerrado. No entanto, sempre atormentado pelas dores e insatisfeito com o diagnóstico, o senhor Cantoni fez novos exames. A cada vez surgia um indício aparentemente decisivo para o diagnóstico, mas que nunca se confirmava. Então vieram as dores no peito. O senhor Cantoni foi várias vezes ao pronto-socorro, sem que fosse encontrado vestígio algum de ameaça de infarte. Ele começou a se queixar também de zumbido nos ouvidos e de cansaço. E recomeçou um outro período de exames e especialistas. Mas que, novamente, em nada resultou.
O senhor Cantoni, “o homem com sintomas sem respostas”, é um dos pacientes de Dino Zeffiri, o pseudônimo que assina o Diário de um Clínico Geral. Sua história, contou-nos Zeffiri, continuou de modo trágico. No verão passado, a esposa de Cantoni foi tomada por repentinas dores abdominais. Quando os médicos deram o diagnóstico de tumor no pâncreas, Cantoni desmaiou: a mulher foi quem o consolou. Submetida à quimioterapia, com poucas esperanças, ela ainda cuida da saúde do marido, cada vez mais acometido por males inexistentes. Ele os inventa? É um doente imaginário? Um hipocondríaco?
Para o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, a hipocondria faz parte dos transtornos somatoformes, cuja característica é a presença de sintomas que levam a pensar em uma patologia física que de fato não existe. É definida como a “preocupação ligada ao medo, ou à convicção de ter uma doença grave”. Nenhum esclarecimento é suficiente para debelar o medo. Consultas, análises e exames não servem para aliviá-lo. Um hipocondríaco passa grande parte do tempo pensando em seus sintomas, falando sobre eles e consultando especialistas. Como não considera nenhum exame convincente, ele os refaz continuamente para ter certeza de que os médicos não deixaram escapar nada. Se o temor de uma doença passa, imediatamente o de outra o assalta.
Apesar de ser conhecida desde a antigüidade e ainda representar um problema para médicos, o conhecimento sobre as causas e os tratamentos da hipocondria é bastante escasso. Estima-se que a incidência na população varie entre 1% e 6%. Não existe um modo unívoco para entender o transtorno, como salientam Maurizio De Vanna, Mauro Cauzer e Roberta Marchiori no livro O Misterioso Planeta da Hipocondria. Há quem a considere um sintoma, uma verdadeira doença, ou ainda um traço de personalidade.
À pergunta “você tem pacientes hipocondríacos?” formulada em um questionário para cem médicos de clínica geral de Trieste e Pádua, na Itália, 86% responderam sim. Certamente os doentes imaginários constituem um percentual significativo dos chamados frequent attender, os pacientes que são um presença constante nos consultórios. Na verdade, somos todos um pouco hipocondríacos. “Todos os médicos foram hipocondríacos” comenta o neurocientista italiano Fabrizio Benedetti, da Universidade de Turim, especialista em efeito placebo. “O estudo detalhado dos sintomas de uma doença leva quase sempre a imaginar que os temos. Quem nunca apalpou os linfonodos do pescoço quando estudava os linfomas? Quem não se sentiu esquizofrênico quando estudava o desdobramento da personalidade?” Nos verdadeiros hipocondríacos, porém, a preocupação em relação à doença se torna o elemento central da vida: ocupa pensamentos, conversas, e influencia ou impede atividades da vida cotidiana.
A sociedade contemporânea piorou as coisas ao estimular uma preocupação excessiva com o cuidado do corpo. Sempre vigilantes e atentos às suas funções normais, tendemos a notar e amplificar cada pequeno sinal e a considerá-lo indício do funcionamento anômalo de algum órgão. Os mais sensíveis tendem a sentir todos os efeitos colaterais descritos nas bulas dos medicamentos, ou a temer terem contraído a última patologia sobre a qual leram no jornal. A internet, neste sentido, foi um desastre. Para quem tem predisposição para a hipocondria, a massa de informações encontrada na rede, em vez de tranqüilizar, alimenta os pesadelos. Cada sintoma pode corresponder a dezenas de patologias, todas potencialmente mortais. Nos Estados Unidos já foi até mesmo cunhado um termo para a fobia das doenças alimentada pela internet: cybercondria.
Os doente imaginários são o tormento dos clínicos gerais, primeiro filtro das ansiedades. Instruídos para distinguir patologias concretas, freqüentemente encontram-se desorientados diante de quem manifesta males que parecem inventados. “O encontro com um doente hipocondríaco me suscita curiosidade, interesse, vontade de investigar” conta Silvano Biondani. “Os seus sintomas são plausíveis e a preocupação que os acompanha me envolve. Acredito, como ele, que sejam premonitórios de uma ou mais doenças importantes, e me é espontâneo ajudá-lo na investigação.” Mas a aliança dura pouco. “Mesmo quando os exames negam a presença dos males temidos, ele insiste em continuar com investigações cada vez mais sofisticadas. Toda tentativa de tranqüilizá-lo fracassa e o paciente se torna invasivo e obstinado. Então tenho uma sensação embaraçosa de derrota que se transforma em revolta. Começo a duvidar dos seus sintomas. Sinto estar perdendo tempo e sendo explorado.”
À pergunta “o que você sente diante de um hipocondríaco?” as respostas mais freqüentes dos médicos de Pádua e Trieste foram “compreensão”, “pena e comiseração”, “incômodo” e “impotência”. Esses pacientes são bastante conhecidos no meio médico, visto que tendem a migrar de um clínico a outro. Nos formulários clínicos há notas destacando suas características. A frustração dos médicos é certa, mesmo porque esses pacientes normalmente recusam qualquer tentativa de estabelecer um diálogo sobre a doença. Desconfiam dos médicos que, depois de todos os exames, propõem uma psicoterapia, convencidos de que o seu problema é físico, grave e iminente.
O nome para o mal que não existe
Mas se os hipocondríacos não têm um verdadeiro problema orgânico, o que eles têm? Na literatura médica antiga o termo deriva de hypochondria, composto pelas palavras gregas hypo, “sob”, e chondros, “cartilagem”. Pensava-se que o distúrbio estivesse alojado no hipocôndrio, parte superior e lateral do abdome, onde se encontram o fígado e o baço. O primeiro a defini-la foi Galeno, no século II, atribuindo-a a uma desordem da “bile negra”. Esse conceito permaneceu por toda a Idade Média e até a Idade Moderna. A partir do século XVIII, o termo passou a indicar um distúrbio melancólico, que se tratava com a aplicação de sanguessugas. Sobretudo na Inglaterra, a hipocondria era considerada a doença dos literatos, o equivalente masculino da histeria. O significado atual foi introduzido no século XIX, época em que diminuiu o interesse da medicina pelo assunto.
Nem mesmo Freud lhe dedicou grande atenção, afirmando que o transtorno, resultado de energias sexuais que, em vez de serem dirigidas a objetos externos, eram voltadas para o próprio corpo, não podia ser investigado apenas do ponto de vista psicológico. Mais tarde, os psicanalistas forneceram várias interpretações para a hipocondria. A hipótese mais clássica sustenta que sua origem estaria vinculada a um ambiente familiar dominado por uma mãe hiperprotetora, que mantém os filhos em estado de dependência: estar doente é o melhor modo de obter tratamentos e atenções.
Ainda hoje não está totalmente claro o que se entende exatamente por hipocondria, mesmo que se tenda a distingui-la do chamado transtorno de somatização, tendência a desenvolver sintomas físicos. “Os casos mais freqüentes são os de pacientes com uma patologia orgânica que têm, no entanto, sintomas físicos amplificados: uma pessoa com artrose que não se levanta da cama queixando-se de dores insuportáveis, ou um cardiopático que fica sem fôlego diante de um esforço mínimo” explica Riccardo Torta, psiquiatra da Universidade de Turim. Uma de suas pacientes, com síndrome bipolar, manifestava sintomas somáticos bastante graves na fase de depressão, em vez dos clássicos transtornos do humor. Como tinha uma certa cultura e se informava continuamente, acabava por interpretar seus sintomas baseando-se nas definições das enciclopédias médicas, relatando depois aos clínicos os sintomas que para eles eram sinais inequívocos de uma certa doença. Deste modo, ela conseguiu colecionar intervenções cirúrgicas de todo tipo, inclusive a retirada da vesícula biliar.
Curar o incurável
Brian Fallon, neuropsiquiatra da Columbia University, em Nova York, é um dos poucos pesquisadores que fez estudos específicos sobre a hipocondria. Começou a interessar-se pela doença há uns 15 anos, ao tratar de um corretor da bolsa de valores com 50 anos que estava convencido de ter um tumor cerebral. Mesmo depois que todos os exames deram resultados negativos, o homem passava os dias pensando em seu câncer. Fallon lhe prescreveu um antidepressivo. Para sua surpresa, o medicamento funcionou perfeitamente. Desde então ele está convencido de que a hipocondria é uma forma de transtorno obsessivo-compulsivo e que pode ser tratada com inibidores seletivos de recaptação da serotonina, as drogas da família do Prozac.
O psiquiatra Arthur Barsky, do Hospital Brigham, de Boston, usa uma terapia cognitivo-comportamental com hipocondríacos. Conforme estudo concluído recentemente com 187 participantes, a terapia parece dar resultados. O método ensina a reduzir a atenção dada às sensações corpóreas e a corrigir comportamentos específicos: por exemplo, pular as páginas do jornal que falam de saúde e evitar sites de medicina. “É um caminho longo, porque freqüentemente estes estilos de comportamento se cristalizaram durante anos” observa Torta. “Normalmente procura-se reestruturar a relação do paciente com seu corpo, utilizando-se inclusive medicamentos para reduzir a ansiedade de base que freqüentemente acompanha o transtorno.” Giorgio Nardone, diretor do Centro de Terapia Estratégica de Arezzo, propõe aos hipocondríacos psicoterapias breves, de poucas semanas, inspiradas nos métodos do Mental Research Institute de Palo Alto, nos Estados Unidos. Em certa ocasião, relatada em seu livro Non c’è notte che non veda il giorno (Não há noite que não veja o dia), prescreveu a um paciente falar de seus medos apenas por meia hora depois do jantar e anotar três vezes ao dia, em pé diante do espelho, todas as sensações e sintomas provenientes do corpo.
Recentemente, surgiram clínicas para hipocondríacos em vários países. “No entanto, a maior parte dos transtornos de ansiedade ligados à saúde, como prefiro me referir à hipocondria, deveria ser administrado e tratado por médicos de família”, afirma Paul Salkovskis, diretor Hospital Maudsley, em Londres.
Uma coisa, no entanto, é certa: estes doentes, etiquetados de imaginários, realmente sofrem. Além do risco de danos por terapias, exames e intervenções desnecessárias há ainda o risco de que as doenças não sejam reconhecidas quando aparecerem realmente.
E seria esta a ironia do destino, o paradoxo dramático: adoecer, enfim, exatamente do que se teve medo por toda a vida.
*A autora Chiara Palmerini é formada em filosofia, especializou-se em jornalismo científico. Tradução de Alexandre Massella
Fonte: Revista Viver Mente & Cérebro. Acesse Aqui