Vivemos um presente de incertezas, sem sonhos e planos, isolados do convívio com as pessoas que queremos bem. Mas, grande parte da população está preocupada mesmo com o futuro: desemprego e questões básicas de sobrevivência.
Iniciamos esta reflexão em dias de inverno pandêmico, final do mês de agosto de 2020, e ouvi um jornalista fazer um comentário sobre o ano de 1968, como ‘o ano que não terminou’[1], e que 2020 será o ano que não começou! Mas, o passar do tempo ficou imune ao Covid-19. O isolamento social na cidade de São Paulo teve início em 24 de março deste ano e, apesar de alguns avanços, os índices de contágio e mortes encontram-se ainda em patamares elevados. Foram feitas aberturas para a circulação de pessoas, mas ainda não existe segurança para o retorno à vida dita ‘normal’. Vivemos um presente de incertezas, sem sonhos e planos, isolados do convívio com as pessoas que queremos bem. Mas, grande parte da população está preocupada mesmo com desemprego e questões básicas de sobrevivência.
Muitos reclamam de ‘ter de ficar em casa’, e do desafio, para os mais jovens, de fazer home-office e cuidar da casa e dos filhos, que também tem dificuldades, com o ensino à distância, entre outros. Os idosos sentem falta das atividades cotidianas e dos familiares, os jovens de seus amigos. Muitos sentem tédio, tristeza, solidão. Muitos deprimidos. Uma situação desconhecida e inaceitável para muitos.
Mas, se prestarmos atenção à realidade da maior parte das pessoas de camadas desfavorecidas (e são milhões!) nos damos conta dos muitos privilégios que poucos têm – morar com certo conforto, comida à mesa, meios financeiros de subsistência. Como é possível o isolamento para esses milhões que saem diariamente para trabalhar, moram em ‘casas’ e cômodos insalubres, sem água, ou comida? Como será este amanhã? O futuro?
Em recente artigo[2] (2020) o pensador Edgar Morin afirma que:
Não sabemos as consequências políticas, econômicas, nacionais e planetárias das restrições causadas pelos confinamentos. Não sabemos se devemos esperar o pior, o melhor, ou ambos misturados: caminhamos na direção a novas incertezas.
CONFIRA TAMBÉM:
O ano está passando, o tempo está passando. Como estamos passando este período? Tantas pessoas, outras tantas respostas. Em abril, no início da pandemia, fiz algumas reflexões e, como pesquisadora, uma pergunta: Qual o impacto desta experiência no grupo 60+? Elaborei, então, algumas questões e enviei a amigos desta faixa etária – universo possível no momento, e recebi 15 respostas, mas quatro só de uma parte do rol de perguntas – opção por mim oferecida. Iniciei este pequeno projeto em abril com uma reflexão, já publicada, no tema De que amanhã…, utilizando como mote a expressão de Victor Hugo, em um poema[3]:
Espectro sempre mascarado que nos segue lado a lado
E que se chama amanhã
Oh! O amanhã é sempre um grande momento
De que amanhã se trata?
Como resultado das entrevistas, escrevi, entre meados de abril e agosto, cinco reflexões, publicadas no site do Portal do Envelhecimento, sobre o conteúdo obtido com as respostas enviadas, e minhas reflexões.
Esta é a sexta e última reflexão temática sobre os impactos da pandemia da Covid-19 sentidos por este grupo de amigos 60+ e, naturalmente, por mim. Lembrando que à época estávamos no início desse doloroso processo. Aqui surge nova questão: quais seriam as respostas hoje? Ouso questioná-los novamente? E lembro que as entrevistas ainda devem ser analisadas tematicamente, trabalho ainda a realizar.
A expressão da reflexão inicial De que amanhã é aqui substituída por De que futuro…, pois aborda as respostas dadas à pergunta final da pesquisa realizada: Quais os principais medos e esperanças em relação ao futuro de maneira geral, e ao seu futuro como indivíduo?
Vamos iniciar com Claudio (76a) que afirma que “o único medo é o sofrimento físico que pode anteceder à morte; por isso partilho da opção pela eutanásia: não tem sentido ficar no aguardo do desenlace à custa de uma vida artificial”.
Já Katia (69 a.) diz que seu principal medo “é que não se consiga tão cedo fabricar uma vacina [e] vamos continuar assustados com o aumento de doentes e mortes; a falência econômica é uma realidade e vai aumentar o número de desempregados [e] de que depois que essa situação se normalizar tudo volte em pouco tempo ao mesmo cenário de poluição ambiental, desigualdade social e conflitos políticos”.
Magali (70a) diz “tenho medo de adoecer e não ter atendimento por causa da COVID19”. Já Aurea (58a) “não sinto medo, neste momento, talvez futuramente, se a crise tornar muito severa, duradoura”, enquanto Luiz (75a) afirma que tem medo “que a sociedade em geral não tire proveito adequado desta crise, devido à má influência, principalmente digital / midiática, que pode aniquilar espirítos não preparados para discernir”.
T. (61a) indica que “meu maior medo em relação ao futuro é como sobreviveremos financeiramente, acho que esse é o medo de todos”. Renate (61 a.) responde “tenho medo do momento de liberação do contato social [e] em que todos puderem retornar ao trabalho, aos shoppings lotados [o] retorno de alunos e professores às salas de aula, à “normalidade”, sem vacina. Todos vão relaxar, mas o coronavírus estará “no ar” e muitos pagarão com suas vidas. Estaremos mais uma vez expostos e vulneráveis ao máximo. Temo me despedir da vida sem poder rever os que amo, principalmente meus filhos. Tenho escrito cartas que envio por e-mail ou WhatsApp contando um pouco do que contei aqui, falando, inclusive, do que temo”.
A esperança surge quando Fernando (64a) afirma que espera “ter saúde para encaminhar minhas filhas e ter uma velhice razoável no pós-aposentadoria”, e Luiz (75a) “individualmente aceito com resignação e satisfação o que o futuro me reserva, considerando que “sou parte construtora” deste futuro”. Magali (70a) “como disse a rainha Elizabeth II, que dias melhores hão de vir e que tudo passa”, e de modo mais imediato Aurea (58a) que pensa que a pandemia “não irá durar muitos meses […] sou uma pessoa otimista”.
T. (61a) vai mais longe ao afirmar que sua esperança é “que o mundo repense seus valores, que possamos de fato pensar na vida e não no consumo, pensar na felicidade, nas relações, no amor e que possamos mesmo ser mais humanos, e não uns mais do que outros […] com essa esperança, de humanos sermos!”. Katia (69a) se aproxima desta afirmação envolvendo povos e países ao dizer “tenho esperanças que os governantes e órgãos internacionais façam algum pacto para ajudar os países mais necessitados [e] uma ponta de esperança que pode haver um movimento contrário: que o Brasil invista seriamente em uma política de saúde pública que atenda a todos, melhorando cada vez mais os padrões do SUS”. Afirmação que expande na perspectiva de:
Graça (70a): “a situação que vivemos apresenta uma oportunidade para refletir sobre aquilo que realmente nos nutre. A própria família terá de ser repensada. No final desta quarentena vamos descobrir a família alargada, o vizinho real e não só o dos likes. Voltarão com força as associações de bairros, clubes e igrejas. Precisamos destes laços. A nossa vida não depende apenas de nós e das nossas escolhas: na verdade, todos estamos nas mãos de todos os outros”. Sonia (62a) concorda e afirma que “sendo bem, bem realista – as coisas não vão ser fáceis para ninguém – temos de pensar de forma humana e global, ajudando uns aos outros […] A gente tem de ser maleável. Se cada um ajudar um pouco com certeza o mundo será bem melhor e seremos mais felizes. Minha esperança é que todos possam sair mais fortalecidos e amorosos uns com os outros”.
T (61a) reforça “sei que não voltaremos à realidade que tínhamos antes. A pandemia nos mudou. Não sei ainda se seremos melhores ou piores, não é tempo de julgamento, mas em termos de educação, nunca em tão pouco tempo tivemos que aprender novas ferramentas para nos comunicar com alunos. Acredito que muito do aprendido deva ser incorporado à formação”. Renate (61a) se aproxima e afirma “a única coisa agora é sobreviver e curtir a vida com intensidade […] a coisa vai longe, bem longe. Temos de ter vacina para sair desta! Sempre fui otimista e acredito que é possível melhorar o mundo. Só não acho que eu vá viver esta mudança. Vai ser gradual, demoradíssima. O homem está profundamente imerso no consumismo e estamos pagando um preço alto por isto. Hábitos não se mudam da noite para o dia!”.
E Tania (61a) na mesma sintonia, de uma mudança mais ampla de valores em perspectiva global “espero que esta vivência coletiva deixe marcas profundas de transformação, onde o ser humano descubra que ele é mais que um CPF em busca da sobrevivência e realização pessoal. Que perceba que sem cooperação, não iremos adiante. No egoísmo e individualismo chegamos a este ponto de ruptura, onde a natureza deu um basta – ou mudamos ou o plano nos exclui. Espero que eu consiga fazer também transformações no modo de viver e encarar os novos desafios. Tenho percebido que preciso de muito menos, e que o item de maior valor é o tempo, o agora. Acredito que tenho por missão melhorar muito as qualidades interiores, ampliar a forma de ver o mundo e, principalmente levar esta vivência e possibilidade a muitos que não conseguirão chegar sozinhos”.
A grande tarefa para todos é pensar, des-pensar, repensar, planejar e trabalhar por um futuro menos desigual em todos os níveis, como indica o líder indígena Ailton Krenak, em recente entrevista[4]:
Precisamos ser críticos a essa ideia plasmada de humanidade homogênea em que o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania. Para que cidadania, alteridade, estar no mundo de uma maneira crítica e consciente, se você pode ser um consumidor? Essa ideia dispensa a experiência de viver numa terra cheia de sentido, numa plataforma para diferentes cosmovisões. Boaventura de Sousa Santos nos ensina que a ecologia dos saberes deveria também integrar nossa experiência cotidiana, inspirar nossas escolhas sobre o lugar em que queremos viver, nossa experiência como comunidade. Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida.
Sem negar os medos e os enormes desafios à frente, concluímos as afirmações esperançosas de nossos amigos entrevistados, que em muito refletem as minhas, respaldados por Morin (2020):
A crise deveria, sobretudo, abrir nossas mentes, há bastante tempo reduzidas ao imediato, ao secundário, e ao frívolo, para o essencial: a importância do amor e da amizade para nosso florescimento pessoal, para a comunidade e para a solidariedade de nossos “eus” nos “nossos”, para o destino da Humanidade, dentro da qual cada um de nós é uma mera partícula. Em suma, o confinamento físico deveria favorecer o desconfinamento mental.
A pós-epidemia será uma aventura incerta na qual se desenvolverão as forças do pior e do melhor, estas últimas estando ainda debilitadas e dispersas. Saibamos enfim que o pior não é certo, que o improvável pode irromper, e que, no titânico e inextinguível combate entre inimigos inseparáveis são Eros e Tânatos, é sensato e revigorante tomar parte de Eros.
Notas
[1] Refere-se ao livro de Ventura, Zuenir. 1968: O ano que não terminou. 2ª ed. — Rio de Janeiro: Objetiva, 2018. https://www.companhiadasletras.com.br/trechos/28000534.pdf
[2] Morin, E. Um festival de incerteza. Instituto Morin. Junho de 2020. Unisinos. http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/599773-um-festival-de-incerteza-artigo-de-edgar-morin
[3] Victor Hugo (1802-1885) – poeta, dramaturgo e estadista francês. Autor dos romances, “Os Miseráveis”, “O Homem que Ri”, “O Corcunda de Notre-Dame”, e “Cantos do Crepúsculo”, entre outras obras célebres. Representante do Romantismo foi eleito para a Academia Francesa.
[4] Krenak, A. “O modo de funcionamento da humanidade entrou em crise”. Entrevista concedida à Bertha Maakaroun, publicada no jornal O Estado de Minas, em 04/abril/2020. https://www.em.com.br/app/noticia/cultura/2020/04/18/interna_cultura,1139814/lider-indigena-ailton-krenak-analisa-a-pandemia-em-e-book-gratuito.shtml
Foto destaque de Manfred Legasto Francisco/Pexels
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