Livro reúne experiências dos cinco anos do projeto Cuidando de Quem Cuida, que se preocupa com o sofrimento e a angústia das pessoas que enfrentam perdas e luto no cotidiano do trabalho.
Paulo Hebmüller
Remédios, dores do estômago à lombar, noites sem dormir, palpitações, taquicardia – seria café demais, trabalho demais, correria demais, preocupação demais?
O diagnóstico e a terapêutica de que a médica Ana Claudia Quintana Arantes necessitava para si mesma vieram como que numa epifania quando ela assistiu ao trabalho do ator João Signorelli no monólogo Gandhi, um Líder Servidor.
Uma das cenas narra a visita de uma mãe que implora ao líder: “Mahatma, diga a meu filho para não comer mais açúcar”. Gandhi pede que ela retorne com a criança depois de duas semanas. Quando eles voltam, Gandhi olha bem no fundo dos olhos do garoto e lhe diz: “Não coma açúcar”. A mãe, agradecida e ao mesmo tempo sem entender, pergunta por que ele não fizera o pedido na visita anterior. E Gandhi responde: “Há duas semanas, eu estava comendo açúcar”.
“Naquele dia, eu me dei conta de que a maior resposta que eu procurava havia chegado: todo o trabalho de cuidar das pessoas na sua integralidade humana só poderia fazer sentido se esse compromisso fosse, em primeiro lugar, dedicado a mim mesma e à minha vida”, relata Ana Claudia. “Nesse dia, fui tomada por uma fortaleza e por uma paz que eu jamais imaginei que morasse em mim. Desse dia em diante eu teria a certeza de estar com os pés no meu caminho: eu posso cuidar do sofrimento do outro, pois estou cuidando do meu” (leia mais sobre o trabalho de Ana Claudia Quintana Arantes (foto) Aqui
A médica lidava diretamente com pacientes de câncer num dos maiores hospitais de São Paulo. Sua rotina era de acompanhar o grande sofrimento dessas pessoas que, não raro, faleciam no hospital. Várias situações do cotidiano eram tão difíceis que Ana Claudia e a psicóloga Cristiane Ferraz Prade, que também trabalhava ali, desenvolveram códigos para se encontrar no restaurante do prédio quando precisavam “salvar uma à outra”: “vamos tomar um café?” era a senha de alerta, enquanto “vamos tomar um chá?” era o sinal para emergências. Numa mesa mais reservada ao fundo, elas trocavam lágrimas e amparo. A proposta de criar um programa de autocuidado destinado a profissionais de saúde nasceu num desses chás, alicerçada na crença de que era preciso fazer mais do que apenas esperar que cada profissional se virasse do jeito que desse com o sofrimento dos pacientes e dos familiares – e com as próprias dores, não validadas nem acolhidas no local de trabalho.
Tabus no hospital
As sementes regadas a lágrimas não germinaram assim tão rápido, porque foi preciso enfrentar alguns “nãos” e portas fechadas até que fossem obtidos o apoio e o financiamento para a criação do projeto Cuidando de Quem Cuida. O programa é ligado à associação Casa do Cuidar e oferece cursos, formação e vivências a profissionais de saúde. O aniversário de cinco anos da iniciativa é comemorado com o livro Cuidando de Quem Cuida, lançado recentemente.
Os resultados do projeto são visíveis nas instituições que o acolhem. Na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, por exemplo, os profissionais criaram um horário semanal para o autocuidado da equipe. “Existem alguns tabus dentro do hospital: relação profissional-paciente, luto por falecimento de paciente, capacidade de enfrentamento emocional do profissional de saúde. Em geral, as pessoas entendem que o estudo sobre o processo de sofrimento, perda, dor e luto também capacita emocionalmente o profissional para a realização de seu trabalho”, aponta a psicóloga Cristiane em seu artigo no livro. “A compreensão intelectual é fundamental, mas de nada serve se não se está com contato com as emoções desencadeadas nas vivências do trabalho para poder elaborá-las e, assim, aprender com as experiências.”
O livro traz ainda textos do médico Ricardo José de Almeida Leme, neurocirurgião do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP); Roberto Pereira Miguel, capelão do HC – que aborda a transformação da espiritualidade em mais uma das espécies de ferramentas utilitárias para o bem-estar na sociedade contemporânea –; do músico e mestre de reiki Plínio Cutait; e da contadora de histórias Kiara Terra.
É do médico Leonardo Consolim, do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, também ligado à FMUSP, o texto que encerra a coletânea. Consolim levanta novamente questionamentos que motivaram o trabalho da equipe. “Como podem profissionais que optaram por cuidar do sofrimento das pessoas adoecerem justamente por realizarem sua tarefa? Onde nós nos perdemos?”, pergunta. Citando poetas e artistas, o médico aponta um caminho: “A chave do cuidado sem sofrimento para o cuidador é a gratidão. Ser grato pela oportunidade de cuidar do outro abre espaços para um olhar interno, para um cuidado de si mesmo. (…) Quando cuidamos, nos encontramos com o outro e conosco também. Esse encontro do Cuidado é um encontro de grande potência, como diz Spinoza. É um estar com o outro que nos engrandece, que traz luz ao nosso viver”.
Cuidando de Quem Cuida
Organização de Cristiane Ferraz Prade (Dínamo Editora/ Casa do Cuidar, 88 págs., R$ 30,00).