Como água para chocolate - Portal do Envelhecimento e Longeviver
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Como água para chocolate

A história se passa no interior do México, quando Tita e Pedro estão apaixonados. Mas é um amor impossível porque, segundo a tradição familiar, ela deve permanecer solteira para cuidar da mãe. Pedro se casa com a irmã mais velha, e é por intermédio da culinária que eles conseguem transmitir seu amor.


Sobre histórias de amor, já escrevia Rumi, o poeta sufi muçulmano, contemporâneo de São Francisco:

O teu amor veio até meu coração e partiu feliz. Depois retornou, vestiu a veste do amor, mas mais uma vez foi-se embora. Timidamente lhe supliquei que ficasse comigo ao menos por alguns dias. Ele se sentou junto a mim e se esqueceu de partir”.

Em tempos tão violentos e de tão pouca tolerância, de relações que se vão com o vento, já que, em muitos casos, bem pouco permanece, que tal agitar as emoções com alguns temperos regados de colheradas sedutoras de paixão e, claro, porções mais do que generosas de amor?

Como todos já devem pelo menos desconfiar, tudo que escrevo esconde significados. A palavra falada contempla necessariamente o outro e os olhos do outro; já, na solidão da escrita, a liberdade passa a ser plena, sincera, não contaminada, principalmente quando o tema trata de algo tão sensível e delicado como o amor. Aí, todo cuidado é pouco e, quando se ama demais… bem, nem preciso dizer.

Pensando em juntar ingredientes mágicos e fantásticos, erotismo e altas doses de alho, cebola, mel, pimenta e pétalas de rosa, nada melhor que a deliciosa história de “Como água para chocolate”, filme mexicano de 1992 baseado na novela de Laura Esquivel e direção de Alfonso Arau.

Ah, é importante explicar que no México, o chocolate é diluído em água, e não em leite, como em outros lugares, daí o título. Um lembrete: o filme é narrado pela sobrinha neta da protagonista e, como adoro fazer, por mim. Quem é ela e quem sou eu? Difícil dizer.

Então, vamos seguir caminho para Rio Grande, México, 1895. Essa viagem é para você, meu amor e, acredite, “É de dar água na boca”, uma delícia.

Para quem não sabe, “a cebola tem que ser bem picada. Sugiro que ponham um pedaço de cebola na cabeça para evitar as lágrimas quando se está cortando”. Ou, abra a torneira e deixe a água fluir – com isso a energia dos líquidos se misturam, como, mais ou menos, acontece na intimidade do amor.  Mas, retornando… “o ruim de chorar quando se pica cebola não é o fato de chorar e sim que, às vezes, não se consegue parar”.

O dia no rancho amanhece, é o parto de Tita, nossa protagonista e heroína, em meio as cebolas, azeites, condimentos e mais um mundo de comilanças.

Nacha, a empregada da casa, sempre contava que quando Tita foi empurrada a este mundo por uma torrente de lágrimas, inundou o chão da cozinha. Quando o susto passou, e a água, graças ao sol evaporou, a pobre recolheu o que restou das lágrimas. E, pasmem, foram 20 kg de sal que usaram para cozinhar por muito tempo.

É, as lagrimas produzem acontecimentos inexplicáveis, elas parecem grudar na pele da gente nos tornando, com o tempo e o avançar da idade, mais “saborosos”, sensíveis, humanos… eu diria, até as raias do exagero, muitas vezes.

Importante lembrar que Tita tinha mais duas irmãs: a fogosa e caliente Gertrudis e a cordata e “sem sal” Rosaura. Logo após seu nascimento, o pai, num encontro com amigos, é surpreendido com a maldosa, mas não mentirosa, insinuação de que sua esposa “esteve” com um tal mestiço, resultando o acontecido na, perceberemos mais tarde, injustiçada Tita. Não suportando o golpe, lá se vai o pai de família, o homem supostamente traído, para o outro lado da vida.

Nacha se encanta ao olhar a pequena e linda menina: “O primeiro que a vir vai querer casar com você”, mas a mãe, amargurada e, porque não dizer, culpada, imediatamente intervém: “Tita nunca se casará. Por ser a mais nova cuidará de mim até que eu morra, é a tradição.”

Abandonada e maltratada pela mãe, Tita, alimentada por Nacha cresce na cozinha, entre o cheiro da canja, do tomilho, do louro, do leite fervido, do alho e, é claro, da insubstituível cebola. E na esteira das lembranças, eis que surge o velho e eficiente moedor de carne manual e aquele barulhinho do óleo derramando sobre a frigideira pelando, o aroma do alho envolvido generosamente pela cebola. Vai me dizer se isso não é amor? Hein?

Bem, o tempo passa, já estamos em 1910, agora Tita já é uma mocinha, já faz as comidinhas do rancho em que mora com a família e já flerta delicadamente com o pequeno Pedro Muzquiz, aquele que será a razão dos seus dias.

“Quando Tita sentiu o olhar ardente de Pedro compreendeu perfeitamente o que sente a massa ao entrar em contato com o óleo fervente. Foi tão real o calor que a invadiu e temendo que, como na massa, lhe surgissem bolhas pelo corpo, no ventre, no coração e nos seios, baixou os olhos e fugiu.” A jovem sabia que aquele amor jamais se realizaria, se dependesse da mãe, mas o que ela não imaginou é que seu amado seria destinado à sua irmã Rosaura.

Sim, a separação dos amantes estava selada, para revolta da irmã Gertrudis, da velha Chacha e da jovem e fiel empregada Chemcha, que esbraveja: “Que mãe cruel Não se pode trocar tacos por enchilladas”! Está feito: Pedro se casará com Rosaura, mas qualquer sacrifício vale para estar perto de Tita: apenas olhá-la e senti-la.

A sobrinha neta lembra e lamenta: “Pena que os buracos negros não haviam sido descobertos naquela época, pois seria fácil para Tita compreender que tinha um buraco negro no peito que a fazia sentir um frio infinito”. E, muitas vezes, esse vazio nunca passa, jamais ameniza.

E a lua, na sua misteriosa imensidão, permanecia como testemunha da infinita tristeza de Tita. Assim, ela se pôs a chorar e tricotar, tricotar e chorar, noite depois de noite, até que finalizou a manta da dor e cobriu-se nela. Mas de nada adiantou, nem naquela noite ou em outras – enquanto viveu não pode controlar o frio.

A vida segue e, por determinação da insensível mãe, Tita fica encarregada do banquete de casamento da irmã. Mas, o que fazer com tantas lágrimas no preparo do bolo?

O choro, inevitável, foi o primeiro sintoma de uma intoxicação estranha. Uma grande melancolia e frustração apossou-se dos convidados, todos com saudades do amor de suas vidas. Até aquele que nenhum amor conheceu, lamentou a emoção não vivida. A dor atingiu inclusive a impiedosa mãe que se refugiou nas lembranças de seu amado mestiço, guardado a sete chaves. A intensidade foi tanta que Nacha, naquele dia, recebeu a indesejável visita da Morte.

Mesmo resistindo, Pedro, depois de três meses, acaba por consumar o casamento com Rosaura: “Senhor, não é luxúria ou prazer, mas para gerar um filho a teu serviço”.

E entre um pai nosso e uma ave maria, o rapaz faz pequenos agrados à Tita como no dia em que a presenteou com rosas vermelhas. Atenta a ilícita aproximação do genro, a mãe ordena que Tita destrua as flores, mas o fantasma de Nacha toma a frente no coração da moça e, determinado, diz: “Você pode preparar codornas ao molho de pétalas de rosa”.

Depois do ritual quase erótico das codornas, Pedro não resiste: “Isso é um manjar dos Deuses”.

Parecia que em um estranho fenômeno de alquimia, não só o sangue de Tita, mas todo o seu ser se havia dissolvido no molho de rosas, no corpo das codornas e nos aromas da comida. Deste modo, ela penetrava no corpo de Pedro voluptuosa, aromática e completamente sensual. Era um novo código de comunicação que se estabelecia entre os amantes, um novo espaço invadido pelo silêncio sagrado.

Afortunados aqueles que conseguem estar juntos, mesmo separados, afortunados aqueles que se amam, mesmo sem se tocarem, afortunados aqueles que se olham, mesmo distantes.

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“Eis a fina descrição de uma experiência de transcendência, experiência de encontro entre duas pessoas que se enamoram e descobrem o amor, uma experiência que revoluciona a consciência e a vida” (BOFF, 2009, p. 26).

Ah, um intervalo de leveza para falarmos um pouco sobre a irmã Gertrudis, um capítulo de sedução a parte na história. Fogosa até os limites do erotismo, num certo dia, ela se encanta com um forasteiro, quem sabe um guerreiro da revolução: “Dizem que basta um olhar e engravida!”.

E o cheiro de rosas que Gertrudis exala chega tão longe que obriga o tal forasteiro, a procurar algo desconhecido, num lugar indefinido. Claro, não foi difícil achá-lo. Parecia que cavalo e cavaleiro obedeciam a ordens superiores. Nua, Gertrudis monta no cavalo do seu estranho e segue seu destino.

Entre uma iguaria e outra, nasce o bebê de Rosaura e Pedro. Como John, o médico, não chega a tempo, Tita acaba por fazer o parto da irmã.

Ao preparar o mole (uma espécie de molho), Tita sente na própria carne como o contato com o fogo altera os elementos, como a massa se transforma em tortilla, como um seio que não sentiu o fogo do amor é um seio inerte, sem vida. Em segundos, Pedro transforma os seios de Tita, de castos a voluptuosos, sem tocá-los. É a magia daqueles que se amam com sinceridade.

Agora é verão e o calor escaldante os aproxima, uma perigosa ameaça de traição que obriga a matriarca a retirar Rosaura e Pedro do rancho. Com a distância de Tita, de seu leite e de seus cuidados, o bebê morre, já que “tudo que ele comia lhe fazia mal”.

Tita se desespera e se refugia, distante de tudo e de todos. Chemcha, preocupada com o estado da moça, pede socorro a John, um eterno apaixonado. Assim, eles partem para bem longe do rancho.

Um suposto véu de noiva é substituído por metros e mais metros de manta tricotada nas noites de tristeza, lágrimas e solidão – essa é a dimensão da falta que Pedro sempre lhe fez.

“Tu, único Sol, vem! Sem ti as flores murcham, vem! Sem ti o mundo não é senão pó e cinza. Este banquete, esta alegria, sem ti são totalmente vazios, vem!” (RUMI, o poeta do amor)

Ao ver as mãos livres das ordens da mãe, Tita não sabia o que pedir. Se suas mãos pudessem se transformar magicamente em pássaros e voar para longe! Ah, se pudessem… Não queria que suas palavras gritassem sua dor, mas sim que gritassem por amor, por desejo e por realização.

Na amizade do generoso John, um toque de esperança na alma de Tita: “Todos nascem com uma caixa de fósforos dentro de si, mas não podemos acendê-los sozinhos. Necessitamos de oxigênio e da ajuda de uma vela. Só que em nosso caso, o oxigênio deve vir do hálito da pessoa amada, a luz da vela pode ser qualquer coisa. Uma melodia, uma palavra, uma carícia, um som, qualquer coisa que dispare o detonador e acenda um dos fósforos”.

Talvez por isso, com tanta frequência (sempre nos repetimos), enviamos músicas para aquele que amamos, presenteamos com livros, escrevemos palavras (como este texto), fazemos comidinhas, carícias que alimentam, cantam e encantam o outro.

“Agora, cada pessoa tem que descobrir quais são seus detonadores para poder viver porque é a chama de apenas um fósforo que nutre a alma de energia”. Sim, não pense que precisamos de muito, apenas uma faísca, basta uma.

“Claro que também é importante acender os fósforos um por um porque se uma emoção intensa acender todos de uma vez, produzirá um esplendor tão forte que aparecerá diante de nossos olhos um túnel mágico que nos mostrará o caminho que esquecemos ao nascer e nos chamará de volta à nossa perdida origem divina”.

Já me despedindo dos amantes, livres dos fantasmas, e sob a benção da velha Chacha, dos temperos, aromas e iguarias, penso na coerência, no modo de viver a vida de Gertrudis quando diz à irmã: “A única verdade é que não existe verdade. Depende de muitas coisas”.

Mas lembre-se sempre: “…se uma emoção intensa acender todos de uma vez…”

Referências

BOFF, Leonardo. Tempo de Transcendência. São Paulo: Editora Vozes, 2009.

EWALD FILHO, Rubens. O cinema vai à mesa. São Paulo: Melhoramentos, 2007.

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Luciana Helena Mussi

Engenheira, psicóloga, mestre em Gerontologia pela PUC-SP e doutora em Psicologia Social PUC-SP. Membro da Comissão Editorial da Revista Kairós-Gerontologia. Coordenadora do Blog Tempo de Viver do Portal do Envelhecimento. Colaboradora do Portal do Envelhecimento. E-mail: lucianahelena@terra.com.br.

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