O personagem Sr. Silva encontra uma forma de lidar com o mal-estar gerado pela morte de sua esposa e sua transferência, a contragosto, a um asilo, que o faz se deparar com sua própria velhice e finitude. Diante de tal realidade, busca encontrar uma saída para o mal-estar, saída que não ocorre sem conflito.
Por Flora Ricciopo Karat, Isadora Di Natale Nobre e Margherita Mizan (*)
A vida humana em sua multiplicidade de aspectos tem como elemento fundante a relação que o homem estabelece entre o seu desejo e a cultura, satisfação que resulta no que podemos chamar de felicidade.
Nomeada de cultura, o aparato simbólico, criação do homem, foi se construindo através das palavras, dos códigos e significados com objetivo de organizar a vida em sociedade. Do ponto de vista psicanalítico, a cultura vai se dar na civilização pela repressão, uma vez que desejos são reprimidos em prol do convívio em sociedade, sendo esta uma das fontes de mal-estar para o homem, pois muitas vezes o impossibilita de atingir a tão esperada felicidade.
Sendo a felicidade condicionada aos aspectos da cultura e da civilização e medida pela repressão, estabelece-se um jogo de prazer e desprazer ao longo da existência. Esta é uma condição da cultura para que possamos viver juntos. Sendo assim, o mal-estar é algo presente em nossa existência fazendo com que o tempo todo estejamos em busca de seu alívio, através de dispositivos que têm esta finalidade, sejam estas drogas lícitas ou ilícitas, terapias, tratamentos e outros.
A cultura então pode ser para o homem uma fonte maior de desprazer ou prazer dependendo de como o indivíduo se relaciona com os elementos desta cultura, como constrói suas expectativas frente às suas relações, assim como seu grau de tolerância ao mal-estar vivenciado.
Bem-estar ou mal-estar na velhice
Esse foi o tema que o Núcleo de Estudo e Pesquisa do Envelhecimento – NEPE, do pós em Gerontologia Social da PUC-SP, escolheu para debater junto ao público em geral no final de outubro. A leitura de apoio para a reflexão foi o texto Mal-Estar na Cultura, de Freud (1939) e o livro de Valter Hugo Mãe chamado a Máquina de Fazer Espanhóis. A proposta deste NEPE foi um diálogo entre a Psicanálise e a literatura, refletindo a partir destes dois olhares, a ideia de bem-estar ou mal-estar na velhice.
Em uma linguagem psicanalítica podemos dizer que este jogo que se estabelece entre o imperativo do desejo e a impossibilidade deste, através do recalque, resulta em sofrimento das diferentes formas de subjetivação. A partir disto, não poderíamos deixar de pensar a velhice inserida na cultura e na civilização contemporânea, que cria um conjunto de prescrições de bem-estar e da promessa de uma vida longa e um envelhecer sem sofrimento. Baseado neste mal-estar real que faz parte da existência humana, criou-se um imperativo do bem viver como única forma possível na velhice.
Somos o tempo todo bombardeados pela sociedade com um conjunto de prescrições de como envelhecer bem, condenando aqueles que por diferentes razões não conseguem ou não desejam seguir tais prescrições, demonstrando a nossa necessidade de distanciamento do mal-estar que se manifesta.
A velhice como outras formas de viver contemporâneas está permeada por forças inconscientes que impõem a ideia de controle da nossa existência. O discurso de bem viver tenta negar a realidade da existência, que é de que o homem é finito e que o caminho da vida nos leva a morte, assim como que a vida é feita tanto de prazer e felicidade quanto de desprazer e sofrimento.
Envelhecimento Ativo, bem-sucedido, envelhecimento sem perdas, são tantas as formas prescritas de envelhecer que desconsideram a singularidade das diversas formas de se viver e envelhecer.
Viver, envelhecer e morrer são fenômenos da existência humana que trazem a cada momento a relação que cada um tem com a vida, com a cultura e com a sociedade. Envelhecer pode ser uma vivência de transformação ou de sofrimento, dependendo de como este sujeito se relacionou com a vida, seus significados e potências. A velhice pode ser um momento de libertação das obrigações sociais ou um momento de angústia diante das demandas sociais. Isto vai depender de como cada um se relaciona com o mundo e sua capacidade criativa frente a tais demandas.
Discussões como estas têm como proposta uma observação da velhice descolada de conceitos já estabelecidos sobre o velho e o seu lugar. Isto será possível se cada um de nós quando falarmos de velhice lembrarmos que ela está em cada um, como a marca da vida.
Messy (1999) diz que a pessoa idosa não existe, o que vivemos é uma série de registros corporais que fornecem características de que somos transpassados pelo tempo, criando assim um termo social, idoso e velhice, mas que em muito se distancia da realidade humana. Sendo assim não existe um idoso ou um velho, de comportamento e perfil pré-estabelecido, mas sim alguém que carrega em si as marcas de sua existência.
Referências
MÃE, V.H. A máquina de fazer espanhóis. 2 ed. São Paulo: Biblioteca azul, 2016.
MESSY, J. A pessoa idosa não existe. São Paulo: Aleph, 1999.
FREUD, S. O mal estar na civilização. In: Obras Completas de Sigmund Freud – volume XXI (1927 – 1931). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Outubro/2017
(*) Flora Ricciopo Karat, Isadora Di Natale Nobre e Margherita Mizan são psicólogas e mestrandas do Pós em Gerontologia Social da PUC-SP.