Nina Maluf atua nos bastidores da morte. Oferece cursos sobre sua área de atuação, como tanatologia, necromaquiagem e reconstrução facial – seu predileto. Mãe de quatro filhos, trabalha em casa e acha natural ver as crianças brincando de “enterrar”, pois o assunto deve ser tratado com naturalidade e a cultura do preconceito com a morte, no Brasil, gera uma carência de bons profissionais. “O que é a morte para mim? Ah, a morte é minha amiga”, diz.
Camila Appel Foto de Nina Maluf: Moacyr Lopes Junior/Folhapress *
O que eu mais gosto de fazer é reconstrução facial. Pegar um cara bem destruidão e deixar ele igual ao que era. Como em casos de acidentes de carro e de moto. Eu gosto do desafio de pegar uma pessoa que, teoricamente, não teria mais condições de ter um caixão aberto e poder oferecer isso para a família.
O assunto em casa é morte de manhã, à tarde e à noite. Até porque meu marido trabalha comigo. Às vezes eu chego e minha pequena de seis anos pergunta: ‘mãe, quantos corpos você fez hoje?’. A primeira vez que ela perguntou eu assustei, mas agora acostumei. Eu faço uma terapia de choque com o meu mais velho (de 13 anos), mostrando casos de overdose ou de alcoolismo. Meu caçula de três anos brinca de enterrar. Ele coloca os irmãos no chão e enterra com travesseiros. Já peguei minha filha mexendo no computador, com o telefone na orelha brincando de atender cliente, perguntando: ‘que horas vai ser o velório?’. Na cabeça deles é tudo muito normal e eu quero que continue assim.
Minha paixão em lecionar é formar profissionais que sejam humanos. Eu busco qualidade, e qualidade é a humanização. É você ter paciência com seu cliente, saber explicar o procedimento para ele, saber vender um serviço sem ser agressivo. Tem muita gente que destrata as famílias e os corpos.
Nosso setor foi um dos poucos que não foi atingido pela crise. As pessoas continuam morrendo, elas não têm escolha. É um mercado que tem crescido porque os empresários estão começando a sentir a necessidade de mostrar que nosso setor é necessário. Na Europa, somos muito valorizados. As crianças são criadas para entender que as pessoas nascem, vivem e morrem. No Brasil, existe a cultura do preconceito com a morte. Isso gera uma carência de bons profissionais.
Desde pequeninha, eu era meio Wandinha, aquela personagem da Família Addams. Quando morria algum bicho no bairro, de peixe a cachorro, me chamavam no portão para eu organizar o enterro. Eu fazia velório, cortejo e enterro. Hoje, meus vizinhos, uma boa parte deles, têm medo de mim. Uns me acham louca, outros falam que eu tenho o cão no corpo. Eles têm medo de morrer, medo da morte, acham tudo isso muito esquisito.
Eu não tenho medo da morte em si, mas sim de deixar meus filhos sozinhos nesse mundo cada vez mais louco. Vejo as pessoas morrendo das formas mais estúpidas e gente fazendo maldade de forma gratuita. Hoje em dia se fala em crime passional como se fosse algo normal. É uma justificativa jurídica que dão para uma atrocidade que não tem justificativa. Muita mulher, no desespero de ter um parceiro, coloca qualquer um em casa, que machuca ela e as crianças. O número de casos com esse tipo de descrição é assustador e eu vejo no trabalho que eles têm crescido.
* Camila Appel é formada em administração de Empresas pela EAESP-FGV e mestre em Antropologia e Desenvolvimento pela London School of Economics (LSE). Trabalhou com microcrédito no Unibanco e estagiou na ONU. Em 2009, estudou dramaturgia na New York University e passou a se dedicar à escrita teatral. Escreve romance de ficção científica e tem peças teatrais, com as já encenadas “A Pantera” (2009) e “Véspera” (2011). Depoimento de Nina Maluf para matéria do formato “Minha História” publicada na Folha. Matéria publica e reproduzida Aqui