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Atividade intelectual previne Alzheimer

Voltar a estudar, aos 69 anos, estava fora dos meus planos, muito fora mesmo, acredite.

Por Manuel de Barro

 

Inscrição – parte 1.

O geriatra me diagnosticou com TNL, Transtorno Neurocognitivo Leve. Provável Doença de Alzheimer.

– Mas muito no comecinho – disse para me tranquilizar.

Sei que ele é patrocinado por laboratórios e imaginei que fosse me entupir de remédios.

– O que o senhor vai me receitar agora?

– Manuel, você precisa realizar atividades intelectuais urgentemente, pois um cérebro preguiçoso atrai doenças. O Alzheimer é apenas uma delas. Converse com sua psicóloga, ela saberá indicar algo relevante intelectualmente falando…

– Intelectualmente falando – bufei. – Doutor, no clube que frequento, jogo dominó, cartas, damas e, de vez em quando, bocha. Todo dia leio jornal e faço as palavras cruzadas na página de cultura…

– Manuel, nada disso é atividade intelectual. Quantos livros você leu este ano?

– O ano acabou de começar… nenhum, mas tem tempo… jornal conta?

– Estamos em julho, Manuel. E nos anos anteriores? Qual foi o último livro que você leu, lembra?

– Li alguns… na faculdade lia muito… mas acompanho o noticiário da TV e sempre que vou ao banheiro ligo o radinho de pilha enquanto…

– Quantas vezes foi ao cinema? Consegue lembrar o enredo de um filme para me contar rapidamente?

– Cinema… de vez em quando vejo um pouco de novela… é a mesma coisa, não é?

– Seus neurônios, Manuel, estão morrendo. Seu cérebro está se atrofiando.

– Doutor, o senhor me assusta falando desse jeito…

– É para assustar mesmo. Metade dos seus 80 bilhões de neurônios já se mataram por não suportar a situação de abandono na qual viviam. Largados, esquecidos, sem função eles se matam… melhor, você acaba com eles!

– Doutor, veja pelo lado positivo, ainda restam 40 bilhões. De acordo com o profeta Raul Seixas o homem só usa 10% de sua cabeça, animal…

– Não brinque, Manuel, mas no fundo você está certo, porque esses neurônios sobreviventes podem entrar em ação a qualquer momento e ocupar o lugar daqueles que morreram, se mataram ou foram assassinados. Mas para isso você tem que começar a desenvolver desde já uma atividade intelectual – disse o médico muito sério.

– Não sinto muita falta, por isso…

– Sabe quando você quer lembrar o nome de uma coisa e a palavra não vem?

– Acontece o tempo todo… por exemplo, semilha, nunca sei como falar o nome em português do Brasil, esqueço, como é mesmo que vocês chamam semilha?

– Batata. Esta palavra faz parte do seu dicionário, mas o neurônio responsável pelo registro dela provavelmente morreu e seu substituto é lerdo. Enquanto isso, o neurônio que registrou a palavra semilha fez isso quando seu cérebro era uma maravilha, por isso salta na frente sempre que você pensa em batata. O neurônio da semilha impede que o da batata se manifeste. Aí, cada vez que você quer pronunciar a palavra batata, o que vem na sua boca é semilha. Mas isso é o de menos. Tem gente que não consegue lembrar nome de pessoas próximas, ruas, locais que acabaram de visitar, esquecem o que fizeram ontem e o que iam fazer logo mais, trocam o nome dos filhos…

Como sou linguarudo, contei para Maurício em tom de brincadeira quando quis saber como foi minha visita ao médico:

– Voltei com a cabeça mais leve.

– Por que, pai?

– Ele disse que metade dos meus neurônios morreram e que se eu não praticar uma atividade intelectual o restante vai pro brejo e me ameaçou com o Alemão, pode?

Meu filho ficou apavorado. Agiu como se estivesse diante de um assassino em massa, um psicopata capaz de destruir o próprio cérebro por pura irresponsabilidade mental.

– O senhor não pode brincar com essas coisas. Precisa falar urgentemente com a psicóloga.

Antecipou a consulta, preocupado, como se os outros 40 bilhões de neurônios estivessem todos de mãos dadas e prontos para saltar da minha ponte de safena e sucumbirem na enxurrada de sangue arterial.

– O senhor tem sorte, seu Manuel, as matrículas dos cursos da UnATI, a Universidade Aberta à Terceira Idade, estão abertas. Vou enviar um link com a relação dos cursos para o seu e-mail – disse a psicóloga consultando minha ficha.

– Este e-mail é do meu filho… mas tudo bem.

– Neste endereço https://prceu.usp.br/3idade/sao-paulo/ o senhor tem a relação de cursos oferecidos pela USP Butantã e USP-Leste. São todos gratuitos. Vou anotar para o senhor.

– Prefiro que mande por e-mail, assim meu filho poderá me ajudar. Tem teste para entrar? Vestibular? Como funciona?

– Não tem teste para entrar, basta se inscrever. O senhor vai escolher o curso, o dia e o horário de acordo com sua disponibilidade.

– Doutora, precisa mesmo disso? O geriatra não exagerou?

– O geriatra tem razão em se preocupar com sua saúde mental. Existem mais de 60 tipos de demências. Até os 60 anos, 1% da população pode desenvolver uma demência. E essa porcentagem dobra a cada período de cinco anos.

– Conta é comigo mesmo. 2% até os 65; 4% até os 70; 8% até os 75; 16% até os 80 e daí pra a frente quem insistir em viver é doido.

– O senhor é bom com números, é economista, não é? Isso quer dizer que um dos hemisférios do seu cérebro está muito bem, mas os outros devem estar com teias de aranha. Vamos focar nos cursos de leitura e escrita. A prosa e a poesia farão muito bem ao senhor. A fantasia e a criatividade vão ajudá-lo a melhorar o humor. Desejo que o senhor viva momentos agradáveis na sua volta à universidade. Fará bem a sua autoestima e mudará sua forma de enxergar o mundo.

– Do jeito que a senhora fala fica a impressão que não há vida fora da USP.

– Hoje nos preocupamos com qualidade de vida. Qual vida o senhor deseja: a dos jogos na companha dos seus amigos de clube ou a da leitura, da escrita, da fantasia e da criatividade? Sem contar que uma não exclui a outra, pelo contrário, uma enriquece a outra, concorda?

A psicóloga enviou um e-mail para meu filho com um resumo da nossa conversa. Para minha surpresa, quando perguntei a Maurício se havia recebido o e-mail, já havia até escolhido os cursos que eu deveria fazer.

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– Ainda não decidi se quero fazer esses cursos e você já…

– Pai, o senhor parou no tempo, não tem alternativa, sua rotina atual é pobre demais e se não mudar vai desenvolver uma demência rapidamente.

– Não há nada de errado com minha rotina. Tentei explicar para o médico e ele me ignorou. Duvido que a sua ou a dele sejam mais ricas que a minha. Vocês só trabalham. Repetem a mesma atividade dia após dia. São engrenagens como naquele filme… como é mesmo o nome?

– Tempos Modernos? Faço academia três vezes por semana, trabalho, estudo e no próximo semestre começo meu mestrado em gerontologia social…

– Mas não tem amigos como eu tenho…

– Pai, o que o senhor chama de amigo eu chamo de atraso de vida.

Minha rotina consistia em preparar o café da manhã e acompanhar meu filho até a rua para fechar o portão da garagem depois que ele saía. Em seguida, trocava o pijama por bermuda e camiseta e saía para caminhar. Andava por volta de duas horas. Na volta, preparava chá, sentava para ler o jornal e cochilava. Quando a fome apertava, ligava a TV para almoçar – gosto de comer assistindo ao jornal – e cochilava. A leitura e a televisão exercem um poder hipnótico sobre mim, confesso. Para me manter desperto depois do almoço, pegava pesado no trabalho doméstico. Divido a casa com meu filho mais novo, mas como ele trabalha fora, assumi a casa. No meio da tarde saía para o clube, o Centro Comunitário do bairro, para conversar com os colegas e jogar dominó, carteado, damas ou bocha. Sempre valendo uns trocados. Desde que me aposentei, esta era minha rotina. E tinha mais: na volta do clube, entrava em dois ou três supermercados para checar as promoções. Sempre comprava alguma coisa. Depois do banho, esperava meu filho voltar do trabalho para jantarmos. Em seguida, ele saía para visitar a mulher e eu o acompanhava até a rua para fechar o portão. Ligava a televisão para assistir a um programa esportivo e cochilava. Despertava com a buzina do carro e ia abrir o portão para meu filho entrar. Fazia meu lanche da noite e me recolhia para dormir, mas só cochilava. Minha rotina podia ser taxada de sonolenta, mas estava longe de ser pobre.

– O que tem de errado com minha rotina, posso saber?

– O senhor passa o dia de pijama e não pratica atividades intelectuais.

– De onde você tirou essa ideia que passo o dia de pijama?

– Cedo, quando saio, o senhor está de pijama, à noite, quando chego, o senhor continua de pijama…

– Tem hora que sinto vontade de dar um tabefe na sua orelha. Quem você acha que vai ao mercado, ao açougue, à padaria, ao banco…? Fique sabendo que caminho de cinco a dez quilômetros diariamente pelo bairro, menos nos finais de semana porque tem jogos ao vivo o dia todo. E todo santo dia converso e jogo com meus amigos. Desenvolvo atividades físicas e intelectuais, sim. Baralho, damas e dominó exigem muito do intelecto. Eu será que só leitura conta? E o jornal, não vale?

– Sua rotina é pobre, pai. O senhor só mexe com números, percebe? São jogos, promoções de mercadorias, contas, números, por isso precisa fazer os cursos da UnATI. Se quiser salvar seus neurônios, os que restam, volte para a universidade e pratique atividades intelectuais como recomendou o geriatra e a psicóloga.

– Não tenho mais idade nem vontade para assumir esse tipo de compromisso.

– Pai, estudar na USP é um privilégio. Vai abrir sua mente, ampliar seus horizontes. Vai aprender coisas novas, conhecer gente nova, conviver com jovens, enfrentar desafios. O que foi que o médico disse sobre os neurônios? Metade já se foi.

– Ainda restam 40 bilhões. E quando um morre, o vizinho passa a fazer o trabalho do falecido. E 40 bilhões é um exagero porque de acordo com Raul Seixas…

– Ouro de tolo. 10% de sua cabeça, animal. Pai, estou falando sério. O senhor sabe muito bem o que deve fazer para não desenvolver uma demência, não sabe?

– Fazer matrícula nos cursos da USP. Esta é a propaganda mais enganosa que já ouvi na vida!

– É o senhor que está dizendo isto. A USP não faz milagre. O que o senhor precisa é exercitar sua mente com atividades intelectuais. Pode fazer isso na igreja, em qualquer entidade, faculdade ou universidade que tenha um programa de cursos voltado para a terceira idade. E hoje todas tem…

– Então, por que USP?

– A USP é pioneira nisso e não está tão longe assim. Oferece cursos nos campus da capital e do interior. É uma oportunidade única para o idoso se manter intelectualmente ativo. Se o senhor lesse livros, estudasse uma língua, fosse ao cinema com frequência, ao teatro…

– Leio jornal, já disse! Acompanho o noticiário. Estou sempre bem informado.

– O senhor dorme diante da TV. Dorme com o jornal na mão. Só não dorme quando realiza trabalho braçal. O senhor precisa de novos desafios, novas amizades, novos ambientes, ou faz isso ou o alemão…

– Alemão é o caralho!

– O senhor está com medo de encarar a USP, não é?

– O que é uma USP para quem fez mestrado em Coimbra e doutorado em Aveiro?

– É exatamente isso, pai, na universidade o senhor vai reviver seu passado e despertar para o futuro, para uma vida nova.

– Só tem uma coisa, meus diplomas se perderam na mudança…

– Pai, eles não querem saber de diplomas, não precisa ter estudado para se inscrever nos cursos da USP, só precisa querer, ter vontade.

– É exatamente o que me falta…

– O senhor se acostumou com essa vidinha sem graça, esses amigos que não exigem nem acrescentam nada. O senhor precisa encarar outra realidade, botar seu cérebro para trabalhar de fato.

– Chega dessa conversa. Vou me inscrever nos cursos da USP, pronto, satisfeito? Vamos ver quais cursos eles oferecem e se algum tem a ver comigo.

– Toda a universidade está aberta para alunos da terceira idade. Todos os cursos estão disponíveis. E ainda criaram dezenas de cursos especialmente para os idosos, são atividades culturais, físicas e esportivas. Com certeza há cursos e atividades para todo tipo de pessoa. Selecionei algumas para o senhor, se concordar, estão aqui, imprimi os programas para facilitar.

– Quero ver tudo – disse sem tomar conhecimento dos cursos que ele havia selecionado.

– Fique à vontade – disse Maurício empurrando o computador para o meu lado. – Vou tomar banho e me trocar para sair. Se o senhor encontrar algo diferente do que anotei, é só abrir aqui e imprimir o programa. Depois discutiremos todos.

A lista era interminável. Realmente havia muita coisa interessante. Comecei a ler e cochilei.

– Pai, acorda, escolheu alguma coisa mais?

– Esta lista não tem fim… prefiro a sua que só tem seis opções.

– Então, leia.

Meu filho saiu, fechei o portão e entrei para ler os programas dos cursos que ele havia separado. Cochilei e acordei com ele buzinando no portão. Depois continuo.

Foto da imagem de destaque: Marcos Santos/USP Imagens


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Mário Lucena

Jornalista, bacharel em Psicologia e editor da Portal Edições, editora do Portal do Envelhecimento. Conheça os livros editados por Mário Lucena.

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