No Caminho, apuramos os sentidos diante de ribeiras, do verde, das flores, cheiro da mata, canto das aves…
Tiago Maior, chamado assim para se diferenciar de outro apóstolo, Tiago filho de Alfeu, é o primeiro a ser chamado por Cristo, ele e o irmão, João Evangelista. Designado a levar a palavra do mestre ao fim do mundo (finis terrae), chega a Hispânia, território hoje conhecido como Península Ibérica, no ano 34. Primeiro lugar a pregar é em Iria Flavia, Padrón, na época, maior cidade da região conhecida como Gallaecia (Galícia). Conquista adeptos, mas não na proporção desejada por ele. Essa é uma das histórias aprendidas durante o Caminho.
De fato, Tiago chega ao fim do mundo (fisterra, em galego; finisterre, em castelhano), considerando-se mais perdedor do que vitorioso em sua jornada. Em Muxía, a Virgem Maria, sua tia, surge em uma barca de pedra e o convence que sua missão está cumprida e que os seguidores de Cristo precisam dele em Jerusalém, para comandar a Igreja Primitiva. Retorna para Jerusalém, torna-se bispo e enfrenta um clima hostil, com cristãos sendo perseguidos e ele próprio proibido de pregar.
Em 44, durante o reinado de Herodes Agripa I, Rei da Judeia, é preso e condenado, mas não crucificado, como o primo famoso, pior, é decapitado. Mas seu corpo é resgatado por dois discípulos, Teodoro e Atanásio, que se lançam ao mar em uma embarcação de pedra, transportando o corpo de volta a Galícia, e o enterram, sem identificação, com receio que seja violado, em um local indicado pelas estrelas, em um campo santo.
No ano 813, um eremita, Pelayo, olhando para o céu, percebe uma movimentação de estrelas, uma chuva estelar que aponta para um determinado local. Segue o rastro das estrelas e descobre um túmulo. Corre até Iria Flavia, Padrón, e informa o fenômeno ao bispo Teodomiro, que segue para o lugar com uma comitiva, remove a urna funerária e declara que os restos mortais indicado pelas estrelas são de Santiago Maior, filho de Zebedeu e Salomé, irmã da Virgem Maria, primeiro apóstolo de Cristo a derramar seu sangue pelo mestre.
CONFIRA TAMBÉM:
Hábitos alimentares, um patrimônio pessoal!
- 29/02/2024
Caixa preferencial
- 17/06/2024
É preciso construir um túmulo descente e identificá-lo. Acabam por enterrá-lo no cemitério de Lebredón, onde hoje se encontra a catedral de Santiago de Compostela. Por que Compostela? Por conta do sinal recebido pelo eremita Pelayo, uma chuva de estrelas, um campo estelar, uma Compostela. Pelayo, o eremita, torna-se santo. Sua igreja no Caminho Inglês, em Ardemil, Conselho de Ordes, fundada no século XII, segue de pé e faz parte da via sacra da região.
Compostela também é o nome dado ao certificado que o peregrino recebe ao completar o Caminho, que deve ser percorrido por mais de 100 km a pé (200 de bicicleta). O Caminho Inglês, partindo de Ferrol, com 113 km, atende a essa exigência. Estamos na penúltima etapa, de Hospital de Bruma a Sigueiro, 24 km, mais do que andou o bispo Teodomiro (de Padrón a Santiago, 20 km), para identificar o corpo e colocar a Galícia no mapa, fazendo de Pelayo ou Paio, o eremita, um santo de muitas paróquias.
Muita gente questiona se a ossada encontrada por San Pelayo de Buscas pertence mesmo a Santiago Maior ou se trata de um case de sucesso, puro marketing, patrocinado pelo rei Alfonso II e executado pelo bispo Teodomiro. Para o peregrino, essa discussão é irrelevante, é como chamar Santiago de Jacobo, James ou Jacques… O santo-apóstolo ri, principalmente quando o chamam de Santiago Matamoros, Padroeiro da Reconquista. Matamoros, significa literalmente matador de mouros. Mas de onde vem isso?
Em 844, depois de ter o corpo identificado e transladado, Tiago se torna mais forte e poderoso, atraindo mais seguidores, porém menos do que o rei e o bispo gostariam. Talvez por faltar um milagre dos grandes para que caia de vez na graça do povo. Na Batalha de Clavijo, quando o rei Ramiro I enfrenta os muçulmanos, apela à proteção do apóstolo. Santiago prontamente atende ao chamado, surgindo montado em um corcel branco, armado até os dentes, para arrancar muitas cabeças e garantir a reconquista. Depois da façanha, habitantes de todas as partes do mundo passam a recorrer ao santo-apóstolo, e muitos desejam ver e tocar a arca de prata na qual se encontram seus restos mortais.
Esta movimentação, além de incentivar o comércio da região, ajuda a proteger e fortalecer os reinos pelo Caminho a Compostela. Para facilitar e atrair mais peregrinos, monarcas mandam construir pontes e erguer hospitais para acolher aqueles que não param de chegar de todas as partes carregando, junto com a fé, doenças e machucados de todo o tipo. Os hospitais, palavra derivada de hospedes, eram os albergues da época, e o Hospital de Bruma ainda é.
Etapa 5, e penúltima, de Bruma a Sigueiro
Partimos de Hospital de Bruma sob uma densa neblina que, aos poucos, se dissipa, mas deixa em seu lugar uma fina chuva. Os peregrinos, na sua maioria, se cobrem, corpo e mochila, com capas coloridas. Nada os detém. Mas nós, acreditando na previsão do tempo, que promete temperaturas de 19 a 29 graus e zero possibilidade de chuva na Galícia, somos surpreendidos. Mas só em parte, pois carrego na mochila pelo menos seis grandes sacos plásticos acondicionando comidas em pequenas porções (nos supermercados da Espanha os sacos são todos grandes). Lançamos mão dos seis para não enxarcar nossas mochilas e proteger nossas cabeças, enquanto Santiago providencia tempo melhor. Chuva passageira, apostamos. A passageira nos acompanha por dez quilômetros. Nestas horas, um tênis/bota impermeável é de suma importância, e colocar uma capa na mochila não pesa, lição do Caminho de Santiago de Compostela.
A etapa cinco é, na sua maior parte, plana e asfaltada. Ninguém merece andar na lama, se a chuva tivesse vindo em outro trecho estaríamos encrencados. Prevendo chegar cansados e sem ânimo para procurar um bom local de hospedagem, reservamos hotel com antecedência. Em busca de comodidade, escolhemos um com café da manhã incluso. O trecho é todo percorrido dentro do Conselho de Ordes, mudando apenas quando entramos em Sigueiro, capital do Conselho de Oroso.
Neste, como em todos os outros trechos, admiramos construções seculares, como a Paróquia de San Pelayo de Buscas, o São Longuinho espanhol. Apuramos os sentidos diante de ribeiras, do colorido das flores, do canto das aves, do verde e do cheiro da mata.
Mas há algo neste trecho que nos perturba, por três quilômetros ou mais andamos ao lado de uma rodovia, em caminho paralelo, protegido, mas ouvindo em vez do canto dos pássaros e da música do vento e das águas das ribeiras o som de carros em alta velocidade.
Mas sempre encontramos singularidades nas pequenas localidades pelas quais passamos. Pastores tocando rebanhos, pessoas idosas cuidando de suas hortas e jardins, hórreos pendurados em palafitas de madeira ou cimento etc. Neste trecho, testemunhamos a visita do padeiro, que chega buzinando alto e estaciona em um local estratégico a espera da clientela, mulheres que acodem ao chamado, idosas, vem para a rua atraídas pela buzina e, especialmente, pelo cheiro do trigo assado. O pão na Galícia é um espetáculo à parte, uma delícia.
A entrada em Sigueiro se dá por um parque com belas folhagens, riachos e pontes. Este é um cuidado que os gestores do Caminho têm, fazer com que o peregrino transite por locais que conversem com o espírito, acariciem a alma, transmitam paz, mas nem sempre é possível. Nos sentamos no parque para descansar, comer alguma coisa, tomar água, para depois seguirmos para o hotel, que nos acolhe com água quente e lençóis limpos. Sigueiro é plana, tem tudo, cidade grande, mas não tivemos muito ânimo para explorar, pois o frio só aumentava e nossa roupa não dava conta. Saímos para jantar e na volta entramos em um mercado para comprarmos mantimentos para o Caminho. Falta apenas um trecho, 16 km, para encerrar a jornada. Nossa expectativa é grande. Estamos quase lá.
Fotos: Arquivo pessoal