Ao final, avó e neto exauridos, nos dois últimos dias de estadia nessa cidade, e estimulados pela chuva, deixaram-se ficar no hotel. Congraçamento total, juntos na farra, juntos no descanso! Transmissão de conhecimento de um lado; curiosidade, interesse e apoio, por outro lado, marcaram para sempre nosso relacionamento.
Lenina Pomeranz (*)
Recente viagem à Rússia, na companhia de um dos meus sobrinhos-netos, proporcionou-me a oportunidade de pensar na minha relação de avó com os meus netos. Não somente em relação a esta admirável figura humana com quem viajei, mas com os demais “netos”, não consanguíneos, mas adotados pelo coração.
Dizem as boas e más línguas, várias coisas sobre esse relacionamento. As avós são as ternas figuras que embalam os sonhos por mundos distintos, cheios de colorido e brincadeiras. E incentivam a leitura e o afeto no relacionamento com os amigos. Mas são também “destruidoras” da educação e dos modos de comportamento que lhes conferem os pais. Comer fora de hora, “chunk food” especialmente, doces e guloseimas, não respeitar os horários de dormir contando histórias. Isto tudo quando crianças. E quando crescem, se tornam adolescentes, adultos? Como fica esse relacionamento?
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- 13/07/2019
Voltam-me as lembranças, bastante diversas entre os netos. Vou fixar-me, neste texto, no meu relacionamento com Bruno, sobrinho-neto com quem fiz a referida viagem. Antes dela, relacionamento cordial e amoroso igual em relação e ele e aos seus irmãos. Na viagem, a vivência diária, a troca das impressões, tornou-me mais próxima dele. Garotão aos 25 anos, foi meu protetor carinhoso em todo o percurso. Aproveitando-se do meu preparo físico – apesar dos 86 anos de idade – fez me percorrer com ele cerca de 10 quilômetros diários pelas ruas limpíssimas e pelos belíssimos e bem tratados jardins moscovitas, ladeados pelas frondosas berioskas – árvore nacional russa. O outono ainda não tinha aparecido, somente umas poucas árvores com folhas amarelas.
Em Moscou, nos percursos, o aprendizado de termos russos – dobre utro (bom dia matutino), dobre den (bom dia até à tarde), dobre vetcher (boa noite, no início dela), dobre notch (boa noite), spassibo (obrigado), pojaluista (de nada, com licença) horasho (tudo bem), além da contagem dos números até 1.000.
Pelas andanças, ele repetia esses termos em voz alta. No café da manhã, no hotel, o deleite com a comida russa: panquecas com caviar vermelho, croissants recheados com geleia russa, peixes defumados de espécies russas. Bruno fez questão de fotografar a larga bancada que exibia os quitutes que o deliciavam. Nos restaurantes, comida russa – borsht (sopa de beterraba), pelmenhes (capeletis russos) e varenikes (pásteis de purê de batatas, temperado com cebola frita, que vendem na Zilana, rotisseria especializada em comida judaica em São Paulo, e eu pensava ser prato judaico…).
A visita ao Kremlin, inclusive na área externa junto ao fogo permanente de homenagem aos soviéticos tombados na guerra, assim como a visita posterior ao Castelo de Armas, trouxe à baila a história russa e muita curiosidade histórica, respondida, em certa medida por nossas amigas russas. E Bruno ouviu com deleite a história da Catedral Central de Moscou, derrubada durante a gestão de Stalin que, em seu lugar mandou construir uma enorme piscina a céu aberto, na qual eu, sua avó, nadava três vezes por semana, no período em que fazia meu doutoramento, para aproveitar o banho obrigatório antes da natação, já que na casa de estudantes em que morava, não havia chuveiro. A URSS acabou, derrubou-se também a piscina e se reconstruiu a gigante Catedral. Na Rússia, tudo são histórias e Bruno as ouvia fascinado.
À noite, deleite com o programa cultural, totalmente distinto das habituais baladas com os amigos, dança folclórica, circo, ballets. A música do Lago dos Cisnes tornou-se objeto da permanente cantoria de Bruno.
O mais marcante, porém, foi o recorrente porquê, a respeito de tudo, da Revolução de Outubro e seus líderes aos fatos resultantes da transformação do sistema; especialmente porque estávamos em Moscou durante a semana, no final da qual seriam realizadas as eleições para o governo municipal, depois das manifestações anteriores realizadas, algumas delas fortemente reprimidas. Surpreendente, especialmente para mim, que acompanho a política russa, foi o ambiente de absoluta tranquilidade reinante durante a semana e no próprio domingo, dia da votação, tanto em Moscou, quanto em São Petersburgo. Os resultados das urnas, que não consegui obter, nem através da TV, nem nos jornais, a não ser quando já no Brasil, forneceram a explicação para ele: o comparecimento às urnas foi inferior a um quarto da população votante, tanto em Moscou, quanto em São Petersburgo, na qual o governador, do partido do governo, foi candidato à reeleição. Bruno: “porque não foram votar? Não gostam do Putin? Porquê? Putin é ditador? Porquê? “
Em São Petersburgo, a descoberta da primeira cidade planejada do mundo, por arquiteto urbanista italiano, contratado por Pedro I, o imperador modernizador da Rússia, no século XVIII, com os edifícios totalmente preservados, em perspectiva única das ruas históricas; a praça em que fica o Hermitage, considerado um dos maiores museus do mundo, no formato da praça do Vaticano romana, enorme, deslumbrante; e as pequenas pontes decoradas com painéis pretos e dourados sobre canais que cortam toda a cidade, em direção ao largo Rio Neva, tudo totalmente distinto de Moscou, cidade cosmopolita ocidentalizada.
Percorremos a distância entre o hotel em que ficamos, bem no início da Av. Nevskaia, a principal da cidade, até os canais, inúmeras vezes; andamos alguns quilômetros por dia, visitando juntos os pontos relevantes da cidade, como as catedrais do Sangue de Cristo e a Catedral de San Isaac, na qual a cúpula redonda possui um caminho estreito que a cerca e da qual pode-se vislumbrar a cidade em todos os seus ângulos. Subimos a pé os mais de 300 degraus e, depois de algum descanso, nos deleitamos com a paisagem de São Petersburgo. No interior das catedrais, dezenas de excursões de turistas, especialmente de chineses – as maiores – e franceses, além de gente de todas as nacionalidades. Bruno, sempre que as via, dizia: “Vó, os chineses vão dominar o mundo!”
Além das andanças, fizemos um grande sight-seeing, de duas horas pela cidade, em ônibus destinado a este fim e um passeio de duas horas pelo Rio Neva. O que nos permitiu ver, ao longo de suas margens, a verdadeira – não a turística – cidade de São Petersburgo, moderna, plena de altos edifícios residenciais e de negócios. Soubemos, então, que a cidade turística não constitui objeto relevante da atividade econômica, senão durante os poucos meses do verão. A modernidade foi o elemento marcante do novo teatro Mairinsky, onde fomos ver o ballet (O lago dos Cisnes) e uma ópera (Boris Godunov, com tradução para o inglês das falas dos personagens, situada acima do palco). A história da outra ópera – A Flauta Mágina, de Mozart – que eu imaginava que contaria com a participação dos bailarinos do Mairinsky é uma verdadeira comédia, vivida pela avó e seu neto.
Debaixo de chuva, fomos ao teatro Mairinsky, por intuição e já hábito. Mas… o espetáculo não era lá; endereço errado, fomos socorridos pela bondade de um taxista que tinha vindo trazer gente para um concerto e nos levou até o portão dos fundos da sucursal do Mairinsky onde se apresentaria a ópera. Volta ao quarteirão gigante, ainda debaixo de chuva, finalmente chegamos, ao terceiro toque para a entrada na sala de concerto. Surpresa: palco no formato de circo, com cadeiras do público ao redor dele. Sem tradução, uma pantomima, que me deixou “passada”: o que fizeram com o Mozart! Bruno não entendeu nada e eu tinha lhe proposto irmos embora depois do segundo ato. A ópera acabou justamente no fim dele. E aí foi buscar o Uber, nosso grande salvador em São Petersburgo. Só que a Internet do celular do Bruno não quis pegar. Salvou-nos a religação feita por número dado por uma senhora no guichê do teatro. Já no hotel, comendo alguma coisa trazida do café da manhã, rimos muito de nossa aventura de crianças… Irmanamo-nos, avó e neto!
Como nos irmanamos novamente, no passeio ao palácio de verão da Imperatriz Catarina, situada a duas horas de carro de São Petersburgo. Desta vez, foi por conta do magnífico palácio e do bosque de berioskas antiguíssimas, dos jardins de canteiros coloridos das mais diversas flores, desde o amor-perfeito às rosas, nos quais passeamos até o horário de ingresso no palácio. Neste, a recomposição interna da mobília de todos os inúmeros cômodos, além da porcelana dos utensílios domésticos, os quadros e esculturas. No final, a Câmara de âmbar, que não é permitido fotografar. Paredes e teto totalmente de âmbar. Foi o ponto alto da viagem a São Petersburgo.
Ao final, avó e neto exauridos, nos dois últimos dias de estadia nessa cidade, e estimulados pela chuva, deixaram-se ficar no hotel. Congraçamento total, juntos na farra, juntos no descanso! Transmissão de conhecimento de um lado; curiosidade, interesse e apoio, por outro lado, marcaram para sempre nosso relacionamento. Em São Paulo, “Vó, como você está? Estou com saudades!”.
(*) Lenina Pomeranz – Professora livre-docente associada do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP. Dedica-se a pesquisa sobre o Processo de Transformação Sistêmica da Rússia, assunto sobre o qual tem escritos vários artigos e livros. Ela acaba de lançar um livro sobre o tema pela Ateliê Editorial, com o título “Do Socialismo Soviético ao Capitalismo Russo”. É verdadeiramente avó de seus netos de coração e dos seus sobrinhos netos. Aos 86 anos continua lecionando, fazendo natação, caminhadas e mostrando aos mais jovens uma invejável vitalidade. E-mail: lenpo@terra.com.br. Fotos: arquivo pessoal. Foto de destaque: Palácio de verão da imperatriz Catarina.