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As ideias felizes

Lucio Carvalho faz uma importante e profunda reflexão sobre a velhice por meio de poesia, questionando a reflexão humana a partir de leituras da pensadora Hannah Arendt, de visitas a instituições de longa permanência e de assistir ao documentário “alive inside”.

Lucio Carvalho *

 

Se existe a condição humana,

ela começa lá pelos oitenta

ou antes disso, se você aguentasse

viver como eu vivo,

passasse os dias comigo,

lambendo os próprios dedos

ou as canelas do cão

do pátio vizinho.

Se ela existe mesmo

você deveria ir visitá-la

num destes asilos

onde há centenas delas

– e você nem imaginava que

havia tantas –

cheias de histórias

em pedaços.

Eu? Estou desde ontem

parada, como uma ilha

no Índico que não espera

ser encontrada.

E devo estar ilhada

onde nem me encontrem

os pássaros, mas

navios em destroços,

as penas destes pássaros

e as palavras que as bocas

já desistiram de dizer.

É uma injustiça que digam

que não tenho ideias felizes. Por mim

eu começava hoje mesmo

um novo jardim

e exigiria cuidados

edênicos.

Velha? Eu estou velha desde os

meus doze anos, quando

a solidão se mostrou pela

primeira vez,

trazendo doces

numa cesta de palha.

Ainda sinto o doce

na boca, mas sua imagem

nunca mais que eu vi.

Devo fazer com que não esqueçam

da minha condição humana

e de como os astros governam

outros astros

e o destino foi derramado

de um balde, como água fria.

A minha alegria só cabe

na música e nos sorrisos

que não procuram falar. A paisagem

é enfadonha e o sublime

dança porque não pode

resistir ao movimento.

Esses bailes a que me convidam

eu já não vou, mas minha alma vai.

Minha casa, como era? Só tenho de

meu o tempo e não quero

gastá-lo com mais ninguém,

nem comigo. Há tempos

não estou mais em casa.

Sem heroísmos aqui. Sem

mentiras. E sem lamúrias,

sobretudo.

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Alguns querem que eu escolha

entre o passado que tive

e o futuro, que é nada.

Eu olho para o que não está

e em breve eu não estarei

disponível nem para visitas.

Talvez nem para as que a memória

eventualmente faz.

Estou ficando

cruel como são os velhos.

Os velhos são cruéis.

Eles são como nós,

mas nós não somos eles.

Palavras me gastam

como coisas,

mas já estou ficando imune.

Essa cadeira me dói. As cadeiras.

Os olhos não doem,

de embaçados. O coração está

forte, mas até quando?

Eu gosto de cápsulas

mais que de chás.

Prefiro a cama

às muletas.

As imagens nunca me cansam

em suas monotonias.

Meu método de dormir

é esquecer.

As ideias felizes,

se contribuíssem para o tempo

andar mais rápido,

teriam maior utilidade,

mas o rádio ainda é melhor

e eu nem estou falando

de quando ele toca

Glenn Miller.

Se a condição humana existe,

ela está dançando

como as formigas dançam

enquanto labutam

ou o amor persegue

quem deseja ser encontrado.

Mas isso tudo a gente

apenas percebe tarde demais.

Por isso canto essa música

que meus lábios mal sabem. É

a mesma que me ensinou

a mãe e o rio que havia em seus olhos

foi de onde me tirou para a vida.

Quando ela voltará

e suas mãozinhas? E para onde

foram os outros? Onde estão

os donos dos olhos que

me olharam? Os lábios

que tocaram minha face?

Onde está o abraço

que ainda pressinto?

Virá mais tarde, antes

da angústia? Depois

da visita?

Eu passo os dedos pelos

tecidos. Toco as unhas aparadas.

Vejo a imagem do espelho

no espelho e vou ainda

que não me convidem.

É que as ideias só são felizes

quando renovam-se.

* Lucio Carvalho escreve ficção, poesia e crítica literária. Só agora começou a escrever sobre esta fase da vida. O poema surgiu após Lucio ter visitado ILPIs e ter visto o documentário muito bonito “alive inside”… O poema vem daí, da velhice e de uma leitura de Hannah Arendt. Email: lucioscjr@uol.com.br. O poema está disponível Aqui

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