Há quatro anos eu as vejo junto a minha mãe. Atendem seus constantes chamados, observam mudanças no paladar e na alimentação, amparam seu corpo, comunicam e realizam adaptações a serem feitas, fazem contato com especialistas, levam-na a passear ao sol. Maria e Inezinha são ouvidos, são os olhos, são os braços e as pernas tão precários em minha mãe. Mais que tudo, estão em cena 24 horas a cada dia. Acolhem às vezes o medo de morrer que minha mãe manifesta, como às vezes a ouvem dizer do cansaço da vida, da vontade de ir embora.
Mauisa Annunziata *
Na foto como na vida, estão as três juntas. Minha mãe no meio e as duas a tocam. As três me emocionam. São quatro anos de convivência. Quatro anos! A par do cuidado, a amizade se fortalece, a admiração ainda mais.
Quem são esses anjos vindos um dia do norte do Brasil, aportando em minha família para nos ajudar num momento limite?
Não sabíamos como resolver a nova condição de minha mãe: não poderia mais ficar tão distante de todos. Até então ela escolhera morar na praia, um sonho seu e de meu pai falecido. Junto com ela, foi uma cuidadora-amiga-faz tudo. A Helena. Deu muito certo! Esse arranjo preparado unicamente por minha mãe durou vários anos. Depois, aos 86 anos e necessitando de tratamentos, não foi mais possível.
Durante alguns meses tentamos duas casas para idosos. Ela não aceitou. Decidimos alugar um apartamento. Minha mãe então ficou mais feliz. Trouxemos seus móveis, sua coleção de terços e santos, seus porta-retratos. No apartamento, referências de sua vida puderam ser preservadas. Agora ela tinha por perto alguns objetos que representavam sua história.
Na verdade a única bagagem de que necessitamos e que nos dá identidade é a nossa história. Alguns objetos dão concretude a essa trajetória, como se fossem marcos à beira do caminho. Sem eles, não somos.
O cenário estava pronto, mais próximo aos desejos e necessidades de minha mãe. Com uma ressalva: ela não poderia protagonizar sozinha. Aí entraram em cena os anjos de que falei no início: as cuidadoras. A Maria e a Inezinha. Uma trouxe a outra. Cada uma a seu tempo, as duas já tinham cuidado de idosos.
Há quatro anos eu as vejo junto a minha mãe. Atendem seus constantes chamados, observam mudanças no paladar e na alimentação, amparam seu corpo, comunicam e realizam adaptações a serem feitas, fazem contato com especialistas, levam-na a passear ao sol. Na última visita que fiz, Inezinha empurrava a cadeira de rodas pela quadra do prédio, incentivando minha mãe a chutar uma bola e fazer gol. As duas estavam alegres. Ri e Inês me explicou que essa era uma forma de minha mãe se exercitar. Eu completei “e de divertir também”.
Outra vez encontrei, deixada no sofá, a caixa de costura da Maria. Ela fazia e enfeitava um babador maior para que minha mãe usasse nas refeições. Essa cuidadora estendia para mais além o seu cuidado. Eu aprecio com gratidão.
Assim, Maria e Inezinha são ouvidos, são os olhos, são os braços e as pernas tão precários em minha mãe. Mais que tudo, estão em cena 24 horas a cada dia. Acolhem às vezes o medo de morrer que minha mãe manifesta, como às vezes a ouvem dizer do cansaço da vida, da vontade de ir embora.
Nós, os filhos, visitamos, provemos, ajudamos quando é preciso. Estamos alertas. Mas nenhum de nós está lá todo o tempo. Participamos, mas nem de perto estamos presentes como estão as cuidadoras. Em cena, destinos cruzados, elas atuam, nós somos coadjuvantes ou figurantes.
O Piauí, de onde vieram Maria e Inezinha, passou a ser um lugar próximo, hospitaleiro, que através das duas, visito e imagino. Mais uma vez, eu agradeço do fundo do coração serem como são.
Às vezes, peço-lhes que me contem sobre suas vidas. Interessa-me como se fazem os anjos.
* Mauisa Annunziata: pedagoga, especializada em Criatividade, com formação em Fenomenologia na Coordenação de Grupos. Poeta e cronista mauisah@gmail.com.