Se Amour contém a dor e a conformidade pelo irreversível, Love foi acompanhado do desespero da dúvida. A reação do velho foi escrever à mulher, um exercício para elaborar lutos.
(Alerta de spoiler: o texto abaixo contém revelações dos enredos dos filmes)
O filme Amor (Amour, 2021), dirigido por Michael Haneke, narra intimamente a última história de um casal, Georges (JeanLouis Trintignant) e Anne (Emmanuelle Riva). Professores de música aposentados, viviam com conforto até a esposa sofrer um acidente vascular cerebral (AVC) e ser submetida a uma cirurgia de carótida malsucedida.
Em debilitação progressiva, a protagonista perdeu a autonomia e o acesso ao mundo fora de seu apartamento. As reverberações em seus relacionamentos foram enormes, desde a inclusão de silêncios e pêsames até as mais drásticas modificações nas dinâmicas familiares. Como descreveu Georges, “só vai ficar pior e acaba quando acabar”. A morte não só a rondava como também se tornou seu único desejo viável.
CONFIRA TAMBÉM:
Assistindo ao longa, sentimentos doloridos me tomaram sem surpresas. Tendo em mente que a transitoriedade comporta tristeza, considerei o desenrolar do filme congruente a falecimentos possíveis. Contudo, estranhei uma reação: lembrar de Love (Love, 2015) de Gaspar Noé, drama erótico que conta a história de um jovem casal, Murphy (Karl Glusman) e Electra (Aomi Muyock), sob o ponto de vista masculino.
A princípio, pensei ter realizado uma associação não só devido ao idioma comum a ambos, como também pelos títulos, que apesar da sugestão, não nomeiam enredos romantizados. Depois, percebo que foi também a discrepante relação das personagens com a mortalidade que me levou à recordação.
Em uma perspectiva heideggeriana, Anne e Electra são Dasaein, portanto, como condição constituinte, ser-para-a-morte. O que se distinguem são as possibilidades de realização de cada uma.
A velha, cujos últimos momentos foram compostos por adoecimento e perdas, colocava a morte como possibilidade singular e irremissível. Em virtude de tal saber, levou o inverno de seus dias propriamente. Enquanto foi capaz de fazer escolhas, com posse de si optou por pedir espaços, receber uma visita, conversar com seu marido, e, sem sucesso, tentar mover-se sozinha de um cômodo a outro. Uma cena emblemática neste quesito é a de seu retorno do Hospital, ainda no início da retrogênese, na qual escolhe, diante do inexorável, deitar sozinha e continuar a ler o livro que estava apreciando antes de sofrer o derrame.
Em contrapartida, na maioria dos momentos, Electra demonstrou a impropriedade de sua existência: capturada pela trama hermeneuticamente sedimentada do mundo, afastou-se da verdade do ser ao viver o cotidiano. Como se fosse imortal, (des)nutria sonhos vagos, usava drogas sem cautela, brigava com violência e insistia em relacionamentos conturbados, sempre à procura de sentidos fugazes.
As narrativas não são lineares, o fim dessas personagens inicia os filmes. O cadáver de Anne, bem-vestido e rodeado de flores, é descoberto pela polícia após arrombamento de seu quarto. Electra não teve seu corpo encontrado, seu desaparecimento foi noticiado ao seu ex-companheiro por uma ligação que buscava esclarecimentos.
Se o primeiro caso contém a dor e a conformidade pelo irreversível, o segundo foi acompanhado do desespero da dúvida. A reação do velho foi escrever à mulher, o que é um exercício interessante para elaborar lutos. Mais crua foi a resposta do estudante, quem teve os sentimentos desvalidados pela atual parceira e guardou para si um monólogo mental ansioso, sem gradação: “me fale se ela está ok, me fale se ela está viva, me fale se ela está feliz.”
As perdas dos personagens masculinos foram precedidas de escolhas quanto as quais possuem, no sentido fenomenológico, responsabilidades. Também se vê que ambos, em algum momento, destrataram pessoas que tentaram ajudá-los. Perguntas com “e se” são produtivas quando nos ajudam a imaginar novos futuros, logo, é infrutífero pensar em como Murphy poderia ter agido para tocar os rumos de Electra. No outro caso os desenhos são mais claros, além da promessa de nunca mais irem a Hospitais, é George quem mata Anne.
Após o susto de vê-lo sufocando a deteriorada esposa, rememorei um dos últimos e poucos autênticos diálogos dos jovens:
“– Você tem medo da morte?
– Eu tenho medo da dor. Não quero morrer com dor.”
Os personagens que viam a morte pequena, em um horizonte distante, conseguiram conectar-se com sua implacabilidade neste breve momento. Quem sabe estariam aptos a tecer considerações sobre eutanásia, distanásia e ortotanásia, temas que Amour traz à tona? Será que o rapaz, covarde frente a compromissos, seria capaz de libertar a amada de uma condição moribunda?
Não apenas atos demandantes como este foram mal encaminhados. Diferente dos velhos, o rapaz e a moça não deixaram o tesão ceder em prol de outras formas de encontros, não preencheram estantes com artes que consumiam. A universitária não pode investir na distante relação com sua mãe – o caso de Anne externou o quão desafiador pode ser o relacionamento materno-filial em meio a crises.
Terminei a experiência de assistir aos velhos com uma bem-vinda sensação de conclusão, apesar de machucada pela violência pela qual foi proporcionada. Hermann Hesse escreve que ser o dono da verdade, poder distinguir perfeitamente bem do mal e ter capacidade de julgar são atributos imaturos. Faltemos sobre a impetuosidade daquele amor e extenuamento.
O sentimento reminiscente foi um pesar pelo outro casal jamais ter a oportunidade de envelhecer. George e Anne, mesmo no meio da turbulência, ao olhar fotografias (arte da qual os jovens eram entusiastas), concluem:
“- É boa.
– O quê?
– A vida. A longa vida.”