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Ambiente domiciliar x longevidade: pequena história de uma casa para velhice

Quase toda história, idéia, construção se inicia por meio de um esboço com os primeiros traços e rascunhos. A pequena história de uma casa para a velhice surgiu assim, associada aos desejos conscientes e inconscientes de estudar a relação complexa que envolve o ambiente domiciliar e a longevidade. Conscientes durante a especialização em Gerontologia abordando a Capacidade funcional de idosos e a Acessibilidade de seus domicílios e inconscientes ao me reportar aos caminhos do meu ambiente domiciliar junto às minhas avós, suas vidas, suas casas…

Farah Rejenne Corrêa Mendes

 

Considerando assim, que a relação entre a biografia do pesquisador e o tema é parte importante na construção do saber. Como bem coloca Oliveira (2001, p.19): “os pensadores mais admiráveis não separam seu trabalho de suas vidas. Encaram ambos demasiados a sério para permitir tal dissociação, e desejam usar cada uma dessas coisas para o enriquecimento da outra”.

Busquei, então, o mestrado em Gerontologia da PUC-SP, objetivando dar continuidade aos estudos, investigando o planejamento do ambiente domiciliar para os cuidados em longo prazo durante o processo de envelhecimento, focando a acessibilidade e a segurança no ambiente.

No entanto, durante as discussões na aula de Metodologia da Pesquisa, observou-se a necessidade de um pré-estudo abordando a percepção ou aceitação das pessoas da necessidade de planejar o ambiente domiciliar em relação à longevidade, acreditando-se que qualquer planejamento deve partir da aceitação, necessidade e reconhecimento de sua importância, ou por parte do usuário ou por seus representantes.

Qual a visão que os idosos têm de planejar o ambiente em relação à longevidade? Essa foi a pergunta norteadora da presente pesquisa, tendo como embasamento as hipóteses de que a negação da velhice contribui para a não aceitação de um ambiente adaptado e acessível em relação à longevidade e, que a aceitação do ambiente adaptado e acessível é pensado e muito bem visto em relação à criança como uma questão de segurança; em relação ao adolescente e adulto como conforto e comodidade; e em relação ao idoso é pensado apenas como dependência.

Enfim, este estudo traz uma reflexão sobre a complexidade que envolve o envelhecimento humano e o ambiente domiciliar a partir do enfoque gerontológico.

O terreno

O processo do envelhecimento é, hoje, objeto de várias pesquisas no mundo. No Brasil, tem deixado de ser apenas uma preocupação da saúde e sócio-econômica, tornando-se uma preocupação de várias áreas da ciência pelas necessidades e exigências do mundo que envelhece, considerando-se o meio em que vivem, seja o espaço público ou seu domicílio. Pesquisas demonstram ainda que o ambiente domiciliar agrega valores econômicos, sociais, emocionais, afetivos e de saúde ao longo da vida, e exerce influência na vida dos idosos, no seu bem-estar.

E segundo Rybczynski (2002), “O bem-estar doméstico é uma necessidade humana fundamental, que está profundamente enraizada em nós e que precisa ser satisfeita”, o que permite e revela uma sensação caseira, de intimidade, de privacidade, de domesticidade e de um ambiente aconchegante.
Ou seja, o ambiente deve proporcionar conforto, segurança e funcionalidade, mas sem perder o foco da individualidade, já que somos seres de desejo acima de tudo.

O projeto

Investigar a visão de idosos de planejar o ambiente domiciliar em relação à longevidade, contribuindo para a formulação de políticas habitacionais que considerem as necessidades e transformações do corpo humano e as relações afetivas estabelecidas com o meio ambiente e social.

Pesquisa quantitativa e qualitativa, realizada com 10 sujeitos, sexo feminino, idade superior a 60 anos, realizada com um grupo de idosos da cidade de São Paulo que participam das atividades oferecidas ao público idoso do Sesc – Unidade Consolação. Realizada análise descritiva dos dados coletados.

Construção e Alicerce

Os moradores – 10 idosas, entre 62 a 81 anos. Idade: média de 70 anos, com idade mínima de 62 anos e a máxima de 81 anos. Nacionalidade: 9 brasileiras; 1 israelita. Quanto ao estado civil: 4 solteiras, 4 viúvas, 2 casadas. Grau de escolaridade: 7 curso superior/graduação. Quanto à renda: 7 recebem aposentadoria entre 6 a 10 salários mínimos, renda avaliada como suficiente por oito das participantes.

Quanto ao tipo de moradia: Apartamento próprio (nove) e 1 (uma) casa cedida. Quanto ao tempo de moradia: Tempo médio de 9 (nove) anos; mínimo de 2 (dois) anos e máximo de 44 anos.

Com o envelhecimento, para muitos ocorre a redução das capacidades – motoras, sensoriais e cognitivas – rompendo a harmonia do quarteto*, comprometendo o desempenho funcional do indivíduo e suas relações afetivas e prazerosas com o meio. Na pesquisa investigamos a vertente saúde, quanto aos sentidos e sistemas.Todos os sentidos, exceto o paladar foram referidos com alguma alteração, assim como em relação aos demais sistemas, exceto o urinário.Questionou-se a interferência dos problemas referidos no cotidiano das entrevistadas, mas apenas três responderam que sim, principalmente nos seus lazeres e prazeres, como viagens e alimentação, que precisam ser modificados ou abandonados.

Morar

A relação funcional no cotidiano, ambiente x morador, também foi investigada, quanto à satisfação com a acústica, iluminação, ventilação apresentado falas de insatisfação. Fator relevante, ao considerarmos as alterações do envelhecimento, como a perda auditiva gradual, principalmente nas freqüências altas (sons agudos), o que provoca redução na inteligibilidade da fala e desconforto acústico, podendo levar ao desinteresse e isolamento social.

Tem muito barulho, porque ele é de frente. Então o barulho é muito grande. Tem movimento intenso da rua, praça e carros. […] se eu abro a janela dos dois quartos da frente e da sala para ventilar, tem logo que fechar, pois fica incomunicável. (AMDG, 69 anos)

A iluminação também é importante, principalmente a iluminação natural durante o dia, que deve ser preferível, pois favorece a produção de hormônios responsáveis pelo bem-estar, como a melatonina, e garante um bom relacionamento com o ambiente, especialmente com os cômodos da casa de maior uso, como o quarto e a sala. E à noite, é importante uma boa iluminação principalmente em mudanças de ambientes (interno e externo) como no trajeto do quarto ao banheiro, a fim de minimizar o risco de quedas.

Não muito, porque é andar baixo, então não bate sol. […] Bate um pouco de sol só à tarde. […] Então como eu saio muito, eu não sinto muito o inverno, mas a hora que eu começar a ficar mais em casa, eu vou precisar de um apartamento mais quentinho. (AMDG, 69 anos)

A sensação de bem-estar e conforto em um ambiente está muito relacionada com as condições de umidade e temperatura do local. E tanto o frio excessivo quanto o calor, que provoca desidratação, devem ser evitados. Com o envelhecimento as atividades e metabolismo humano se alteram, diminuindo a quantidade de água nos órgãos e na pele, provocando uma sensação térmica baixa. Com isso, as medidas para a manutenção do conforto ambiental devem ser adotadas, de acordo com as estações do ano e horários do dia e preferências e estados de saúde dos idosos.

Quanto à acessibilidade, outra questão abordada, todas consideram a sua casa acessível para si, mas em relação a receber visitas com necessidades específicas, sete responderam que são inacessíveis. A justificativa principal foram as barreiras físicas que dificultam ou impossibilitam o acesso livre ao ambiente (prédios de apartamentos e casa), requerendo desde a entrada ajuda de terceiros, sob pena de limitar-se apenas à garagem, dividindo o espaço com os veículos.

No meu prédio, também tem uma coisa ruim, pois só tem um elevador que desce até a garagem. Então quando está em reforma ou outra coisa, é um problema para quem desce na garagem com compras ou na cadeira de rodas. E tem muita pessoa de idade lá. […] pois para uma pessoa idosa subir um lance de escada da garagem até o térreo para pegar o outro elevador, não é fácil. (AMDG, 69 anos)

Em relação às barreiras, Prado (2003), expressa as suas conseqüências:

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Ambientes com barreiras intimidam as pessoas, inibem a expressão das habilidades e oferecem poucas oportunidades para o desenvolvimento de seus potenciais. (2003, p.20)

No entanto, deixemos claro que, ser e estar idoso não significa impreterivelmente que se terá limitações físicas, sensoriais e cognitivas, mas que ao viver mais, teremos mais tempo de sujeição e exposição às ações fisiológicas e ambientais, que podem desencadear ou não incapacidade e dependência.

Decorar

Com o tempo o corpo se transforma, torna-se fragilizado e enrugado. O tempo influencia no biológico, mas também no psicológico, social e econômico. E falar em tempo, na velhice, provoca argumentos que se concentram em não há tempo. O tempo já passou, meu tempo já passou. Não há mais projetos e sim a espera por um fim digno.

A idéia de tempo, para algumas entrevistadas, permanece inalterado, estável, representa o dia após dia, o tempo é hoje, amanhã será um novo dia, de novas vivências, descobertas, gostos e desgostos. Ação de acordo com as necessidades vigentes, nada de pensar nas possíveis.

As coisas surgem de acordo com que os problemas vão surgindo. E algumas pessoas apresentam problemas e outras não. (MM, 65 anos)

E conforme Gihorn ([198-?], p. 214 citado por Carli (2004, p. 41),

“Os idosos preferem se manter nas próprias casas, particularmente quando a opção é uma instituição para idosos. A maioria das pessoas acima de 75 anos prefere envelhecer no lugar em que já vivem e não perdem tempo pensando em casas futuras, eles geralmente preferem manter as coisas do jeito que estão.”
Assim como, a casa é tudo aquilo que “me proporciona”. É o aconchego, a autonomia, a segurança, o bem estar, o bem maior de suas vidas. É o “meu lugar”, qualificativo atribuído por Sawaia (1995) apenas àqueles locais que permitem relações mais duradouras, que são sentidos como o lugar de vida integral, ou seja, o lugar com sentimento de pertencimento.

Minha autonomia, meu sossego, meu bem-estar. (AMDG, 69 anos)

Minha segurança. (VCS, 81 anos)

Como é que eu vou dizer isso?! Não sei, acho que é que nem bichinho, é meu território. Aquilo lá é meu domínio. (JS, 79 anos)

Lar gostoso, harmonioso. (MSS, 71 anos)

A Casa: Um modo genuíno de morar

O ambiente domiciliar tem papel primordial no bem-estar, no conforto e na saúde durante todo curso de vida. Mas o que observamos são ambientes projetados para adultos jovens sem nenhuma limitação e a desconsideração das necessidades dos idosos, bem como das crianças, das pessoas muito altas ou baixas, das mulheres gestantes, das pessoas obesas e das pessoas com limitações sensoriais, cognitivas e físicas, como os que utilizam cadeira de rodas, bengalas, muletas e andadores, que também são usuários desses espaços.

E especificamente em relação às pessoas idosas, algumas almejam viver a velhice em suas casas. Mas enquanto ao longo da vida sofrem alterações fisiológicas, biológicas e funcionais, a casa permanece praticamente inalterada, com poucas intervenções para a melhora ou manutenção de uma relação harmoniosa entre o ambiente e o usuário, agora envelhecido, agora idoso.

Por fim, a questão do envelhecimento, de “ser velho”, permeou as respostas das entrevistadas, mas a relação com o ambiente teve pouca representatividade, quando se trata de planejá-lo. Respondendo à pergunta norteadora do estudo, observamos que as pessoas não planejam o seu ambiente para a velhice. As ações e medidas tomadas que caracterizamos como “curativas”, não têm caráter de intervenção preventiva, elas acontecem a partir dos acontecimentos e necessidades, à medida que vão surgindo e demandando soluções.

O não planejar pode estar associado a um fator crucial: a educação para a longevidade, o conhecimento de que a velhice é uma etapa normal, inevitável, irreversível e não uma doença ou simplesmente dependência. Sendo importante e necessário sim, estarmos atento ao “outro”, mas principalmente se auto-conhecer, entendendo o seu corpo, suas transformações e necessidades, desmistificando a visão estereotipada e segregadora da velhice.

Nesse contexto, a proposta foi escutar o “outro” – o ser idoso, o que possibilitou compreender um pouco da complexa relação entre o ambiente domiciliar e o morador que envelhece; e mais que os requisitos físicos e funcionais que proporcionam independência, autonomia e permitem acessibilidade e fácil uso do ambiente, há que respeitar sua história de vida, intimidade, individualidade e privacidade, a fim de propiciar a permanência harmoniosa e confortável em sua casa, o não abandono de suas atividades, a continuidade das relações sociais e a concretização de seus desejos e escolhas individuais, bem como a reflexão das entrevistadas sobre a própria velhice e seu ambiente domiciliar.

Por fim, acreditando na relevância deste estudo e que ele possa servir como referência nos planejamentos ambientais e em outros estudos, procuramos trazer, a contribuição para as políticas públicas e habitacionais que contemplem os projetos residenciais acessíveis e adaptáveis, considerando as mudanças fisiológicas e funcionais do ser humano e as representações, vínculos e sentimentos do idoso com seu meio familiar; proporcionando ambientes que permitam uma relação harmoniosa em todas as fases da vida, contribuindo para o bem-estar e a permanência do idoso em sua casa, seu espaço afetivo.

“A casa é o corpo que colocamos sobre o nosso próprio corpo e conforme o nosso corpo envelhece, a casa também envelhece e assim como nosso corpo adoece, nossa casa adoece.” (KING, 2002)

*Homem – Ambiente – Atividade – Conforto – processam uma relação intrínseca e harmoniosa entre os sentidos, os sistemas do corpo humano, os estímulos ambientais e os desejos.

A dissertação completa pode ser acessada no seguinte endereço: Disponível Aqui

Referências

CARLI, S.M.M.P. Habitação adaptável ao idoso: um método para projetos residenciais. 2004. Tese (Doutorado em Arquitetura) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo.
OLIVEIRA, P.S. (org) Caminhos de construção da pesquisa em Ciências Humanas”. In: ___. Metodologia das Ciências Humanas. São Paulo: HUTEC, 2001.

PRADO, A.R.L. A Cidade e o Idoso: um estudo da questão de acessibilidade nos bairros Jardim de Abril e Jardim do Lago do município de São Paulo. 2003. Dissertação (Mestrado em Gerontologia) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

ROSE RED: A casa adormecida. Direção: Stephen King. Intérpretes: Nancy Travis e outros. Warner Home Vídeo, 2002. Legendas em Inglês, Espanhol, Português, Japonês, Tailandês, Chinês, Coreano. 1DVD vídeo (250 min), colorido.

RYBCZYNSKI, W. Casa: pequena história de uma idéia. Rio de Janeiro: Record, 2002
SAWAIA, B.B. O calor do lugar: segregação urbana e identidade. São Paulo em perspectiva, São Paulo, 9(2): 20-24, 1995.

Relato baseado na dissertação de mestrado em Gerontologia que leva o mesmo título, defendida em maio de 2007 na PUC-SP, sob a orientação da profa. Dra. Beltrina Côrte.

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