Ante a pergunta “ainda viva”? , a resposta deveria estar na ponta da língua de cada velho: Sim! Vivo! Da melhor maneira que posso eu vivo! Vivo e existo! No mais deixem minha Nina ser velha! Paz para viver a velhice! Deixem Dona Maria, Seu Ernesto e Dona Clara serem velhos e bem velhos!
Não resta dúvida! Algumas pessoas deveriam compreender que muitas vezes, ficar calada é o melhor que se pode fazer. Mas pessoas são pessoas e não se calam. Teimam em ser simpáticas, custe o que custar e doe a quem doer. Que coisa! Era um sábado de muito calor. Dia de feira na porta da minha casa e eu e meu marido passeávamos com nossas cachorras bem na esquina aonde o pessoal que vai as compras deixa a chave do carro nas mãos do manobrista “simpático”. Enquanto meu marido acompanhava nossa Estrela de dois anos entre latidos estridentes e muitos puxões na coleira, eu calmamente passeava com minha Nina que daqui a pouco completará 17! Quem me conhece sabe que a Gerontologia Canina muito me inspira.
Com minha Nina aprendo que os passos lentos da velhice, na verdade, nos mostram novos caminhos que antes, com a correria da juventude, não enxergávamos. A Nina cheira o mundo a sua volta para que nada passe despercebido, afinal seus olhinhos esbranquiçados exigem dela uma nova maneira de compreender o entorno. Uma vida intensa que agora, na velhice, colhe os frutos de todo amor plantado por ela durante toda sua existência. Por esta velhinha tenho feito tudo o que posso e o que não posso e mesmo assim sinto estar sempre me dívida com ela.
Toda dedicação, parece pouco perto do imenso amor que ela sempre deu a mim e a minha família. É, sem dúvida, a cachorra mais boa gente que conheço. Estrela muito se beneficia com essa relação mas seu temperamento agridoce complica um pouco as coisas. Temo que ela fique conhecida como a “tal descontrolada” já que começa a latir desde a hora que entra no elevador, como se precisasse anunciar a todos, escandalosamente, a sua chegada.
Meu marido fica encarregado de cuidar dela e pedir desculpas a todos com quem ela resolve “tretar”. Fico com minha doce velhinha que entre um tropeço e outro espalha calmaria pelo caminho. Por hora, Nina resolve empacar como se estivesse com as patas coladas na calçada. Estrela, ciente de seu papel, vai para perto dela e com algumas rabadas na cara da velhinha, faz a Nina voltar a andar. Entre um deslize e outro, sem pressa, curtimos o sábado. Cientes da demora e da dificuldade de locomoção, entendemos que iremos levar uma eternidade até chegar à próxima esquina. Mas é sábado e a pressa está de folga.
Seguimos nosso passeio com pausas para conversas com os moradores do bairro, donos de cachorro, que compartilham experiências em meio à curiosidade em torno da idade da Nina. Ouvir o “tão velhinha, tadinha,” parecia ser o máximo do absurdo, até que o manobrista simpático resolve olhar para a Nina e soltar uma pérola, a maior delas: Ainda viva? Ouvi aquilo e senti um não sei o quê que me tirou do sério. Respirei fundo e olhei para meu marido que me acalentava com o olhar. Precisei me segurar para não dizer, em resposta ao “ainda viva?” algo como: Não! Está morta! É que gostava tanto dela que resolvi empalhar e colocar motor! Ou: Não! Está morta! Esta é apenas uma entidade que me segue. Não! Morreu faz tempo, mas insiste em me assombrar!
Oras! Que loucura! Deixem minha Nina ser velha! Penso também na dona Maria, aqui do prédio, que de um tempo para cá ganhou os braços de uma cuidadora que a acompanha em todos os passeios já que nesses últimos tempos, estar sozinha tornou-se algo arriscado. Dona Maria relutou e deu trabalho para a filha que custou a convencê-la que neste momento, o melhor não é estar só. O mesmo acontece com minha doce Nina que tem um latido que parece ser neurológico de tão contínuo e ininterrupto. Mas ela, assim como Dona Maria, entendeu que acompanhada estará mais segura. Nina interrompe o latido sempre quando chego perto. Assim como Dona Maria, Nina e tantos outros velhos caninos e humanos, em algum momento de suas velhices, serão ajudados e isso não é motivo de vergonha. Faz parte da natureza humana receber ajuda. Acontece que vivemos em uma sociedade que preza a juventude e a individualidade. Ser autossuficiente é um “MUST”. Idosos vivem muito. A medicina humana e também a medicina veterinária evoluíram ao ponto de manterem vivos os corpos que envelhecem ao ponto de causar espanto.
Ainda viva?
Já imaginaram como seria se eu, semanalmente, recebesse as idosas que frequentam o atelier de arteterapia do museu que trabalho com um abraço seguido de um: Ainda viva? Será que o manobrista não percebe o mundo a sua volta? Não enxerga esse mundo cada dia mais longevo?
Tento ajudar as idosas do meu convívio a continuarem vivas no mais amplo sentido da palavra. O mesmo tenho feito com minha Nina que até banho de mar tem tomado para desestressar de sua velhice tão comentada.
Sim! É preciso ser velho e estar vivo!
A Arte pelo olhar da Arteterapia faz isso. Com atividades estimulantes as propostas buscam manter o viver em uma frequência capaz de animar a rotina dos idosos. Idosos cujos filhos oferecem braços para seguir em frente. Idosos que comumente traduzem os braços dados a uma dependência, tão rejeitada.
Nas atividades artísticas o velho tem a chance de soltar as amarras impostas pela velhice avançada para exercer a liberdade tão almejada. Que a arte possa ser feita por toda parte. No museu onde trabalho, nos Centros Dia, nos Residenciais para idosos e em todos os lares daqueles que, pelo avanço da idade, causam no outro um olhar que é retrucado invasivamente com a pergunta: Ainda Vive?
Sim! Vivo! Da melhor maneira que posso eu vivo! Vivo e existo! E essa deveria ser a resposta existente na ponta da língua de cada velho. No mais deixem minha Nina ser velha! Paz para viver a velhice! Deixem Dona Maria, Seu Ernesto e Dona Clara serem velhos e bem velhos!
Que façam Arte para poder responder em alto e bom tom! Sim! Ainda vivo! Por hora, continuarei a ajudar minha velhinha em tudo o que for preciso. Ao encontrá-la encalhada nas quinas da casa, a certeza de que meu colo irá tirá-la do aperto são traduzidos em latidos como chamado de socorro. E lá vou eu resgatá-la sempre que necessário.
Aos velhos humanos, meu resgate é oferecido pela Arte que ameniza as dificuldades de estar avançadamente vivo nesta sociedade pateticamente plastificada.
O passeio continua. O manobrista simpático sorri para ser agradável.
Meu marido segura a Estrela com força numa tentativa de controlar sua personalidade peculiar. Ela rosna para o tal moço do sorriso sem graça e espalha discórdia no momento vivido.
Com a desculpa de afastar a Estrela do moço, seguimos o passeio.
Ainda viva? Ainda Viva? Ainda viva? Sigo em frente com o espanto como um mantra. Observo as duas. Nina não dá bola para as pequenices do mundo humano. Estrela tem o faro aguçado para as cretinices alheias e eu acabo me convencendo do bom-senso da pequena temperamental.
O passeio por fim termina com o sol dando lugar às nuvens carregadas.
A chuva logo mais chegará forte para refrescar o fervor da vida. Vida que prossegue. Amanhã não tem feira.
Imagens: Cristiane T. Pomeranz