Havia já muito tempo que não falava a respeito dela, mas, não mais que de repente, em uma conversa banal em casa de minha irmã Odila, o assunto veio à tona. E veio com um acréscimo pitoresco onde meu pai aparecia como o personagem principal.
Waldir Bíscaro *
Aconteceu em 1945. Foi em Ribeirão Preto, mas eu já não estava por lá, estava em Rio Claro. O Brasil vivia os últimos meses da ditadura de Getulio e a FEB, que lutara na Itália, se preparava para o retorno. Ainda não sei como tudo começou e o que soube, na época, não passava de umas poucas e dispersas informações relatadas por minha mãe e minhas irmãs.
Contaram-me que certa manhã, o povo se juntou em frente a um grande armazém de secos e molhados de propriedade do presidente da associação comercial de Ribeirão, na rua Saldanha Marinho. Em seguida, não se sabe se sob o comando de alguém ou por espontaneidade, a multidão invade a loja e a saqueia. Nada sobrou do que se achava exposto no armazém, nem as tábuas das prateleiras foram poupadas.
O saque com certeza se estenderia para outras lojas, a maior delas, a Casa Andreolli distava apenas um ou dois quarteirões da Casa Robin, a primeira a ser saqueada. A continuidade dos saques só não ocorreu porque um contingente do exército convocado de Pirassununga se posicionou na rua mais agitada e acionou as metralhadoras com rajadas para o alto.
Soube também, na época, que a “turma do Baiano” – uma espécie de gang juvenil sediada na Vila Tibério – teria saído em passeata pela cidade portando uma bandeira vermelha.
Era tudo o que sabia a respeito desse evento. Após mais de sessenta anos sem mais falar desse assunto, este vem à baila em uma conversa em casa de minha irmã.
Por conta desse reencontro com o tema, meu interesse se aguçou, quis saber mais. Procurei na internet para ver se encontrava mais informações sobre a tal revolta popular e nada encontrei, fiquei desapontado, mas continuei a busca e acabei encontrando o endereço do Arquivo Público e Histórico de Ribeirão.
Sem muita esperança de obter alguma informação, enviei para o Arquivo um e-mail com algumas perguntas. Quem sabe, eles me atenderiam. E me atenderam com muita presteza e simpatia.
Passados alguns dias, recebo do Arquivo de Ribeirão, pela internet, um recorte do jornal “A Tarde”. Foi o único documento que eles acharam sobre a revolta popular. Lá estava estampada a manchete: “Os acontecimentos de 12 de Junho”. Uma foto mostrava um aglomerado de homens, quase todos de chapéu, portando sacos e pacotes retirados do armazém “sob o olhar complacente do delegado…”
Mais adiante o jornalista se pergunta: “o que adiantou os masorqueiros reunirem-se na Praça 7 de Setembro, na manhã do dia 12, obrigarem os estabelecimentos a cerrarem as portas e no fim saquear uma casa comercial?”(sic) Em seguida fala que jornais de todo o Brasil estamparam grandes títulos sobre o ocorrido em Ribeirão e “a nossa cidade criou fama de masorqueira e de elementos ruins”(sic).
O tal jornal se restringia a desqualificar o movimento e condenar genericamente “os mazorqueiros”, mas não fazia, por exemplo, qualquer referência a possíveis instigadores do movimento e concluía a matéria dizendo: “É o que dão certos movimentos encabeçados por desclassificados e analfabetos”.
Confesso que fiquei fulo com esse tratamento dado pelo jornal. É que, bem diferente da posição do redator, desde pequeno, quando me referia ao episódio, o fazia com certo orgulho pela coragem do povo de minha terra. Sempre achei que havia sido um evento politicamente marcante, mas, vai ver, tudo não passara de fato corriqueiro, sem qualquer importância. Com certeza, fora minha fantasia que dera coloração de valor histórico ao acontecimento.
Mais uma “batalha de Itararé”, pensei. Era preciso buscar outras fontes. Felizmente, não me dei por vencido.
Desde setembro de 2008, o “Jornal da Vila”, um tablóide mensal que circula em meu bairro de infância, publicava minhas crônicas e outros temas. O Fernando Braga, diretor do jornal, me descobriu através do Portal do Envelhecimento e se tornou meu amigo.
Para completar os dados a respeito da revolta popular de 1945, pedi ao Braga que contatasse algum velho comunista de Ribeirão, como o Luciano Lepera, que ele conhecia, e obtivesse algum depoimento sobre o ocorrido em 1945. Infelizmente, o Luciano estava gravemente enfermo e veio a falecer alguns dias depois. Ele contatou outros que sabiam do ocorrido e esses lhe garantiram que o saque da casa Robin fora resultado de um movimento espontâneo, sem nenhuma orquestração.
Minha terra sempre foi conhecida como cidade não apenas rica, mas também um forte reduto do partido comunista nos anos quarenta e cinquenta. Aliás, lembro-me aqui de conversas que tive com o Doutor Sergio Arouca, em que ele falava dos debates entre estudantes e o Lepera que ocorriam em plena Praça XV, centro de Ribeirão. Pelo que o Arouca dizia, o velho Lepera era um ídolo entre os estudantes. Não seria de admirar que pudesse ocorrer um ato espontâneo de revolta em uma cidade impregnada de ideais políticos.
Em nova mensagem, o jornalista Braga me indica um livro publicado pela Imprensa Oficial do Estado e que faz referência ao episódio da revolta.
O nome do livro: “A DEMOCRACIA INTOLERANTE” e seu autor: Pedro Estevam da Rocha Pomar. Da família Pomar, eu conhecia, de meus tempos de militância – o pai de Pedro Estevam, Wladimir, e seu irmão Walter. O patriarca da família, avô de Pedro, era ninguém menos que o velho Pedro Pomar, líder comunista assassinado pela polícia no famoso “massacre da Lapa” (1976).
O livro baseou-se na dissertação de mestrado do autor, que pesquisou conflitos políticos envolvendo de um lado o aparelho estatal paulista e de outro o Partido Comunista, nos anos quarenta, na região de Ribeirão Preto. E foi nesse livro que encontrei o que procurava.
Na página 130 do livro está: “Dois acontecimentos locais, impulsionados por militantes comunistas tiveram importância no crescimento do PCB em Ribeirão Preto… e constituíram-se em marco histórico do movimento operário na região e no Estado. O primeiro deles foi “a maior manifestação da classe trabalhadora local vista até então”: no dia 12 de junho de 1945, uma imensa passeata de protesto, onde se destacaram os cerca de 2.000 trabalhadores das indústrias de cerveja e cujo desdobramento imediato foi o saque da Casa Robin, que especulava com víveres”.
Em seguida, o autor ressalta:
“O movimento foi vitorioso em todos os aspectos […] as reivindicações salariais das várias categorias envolvidas foram atendidas já no dia 14 de junho. A última majoração das tarifas de água e luz foi cancelada e houve a proibição de novos aumentos de preços dos alimentos”.
Restaurada a importância histórica daquele evento, fiquei com a alma lavada, mas, como foi que meu pai entrou nessa história?
Seu Tonico trabalhava como motorista em uma firma de material de construção. No momento do saque a casa Robin, ele passava nas proximidades da rua Saldanha Marinho e, sem que ele percebesse, alguém jogou uma lata de óleo de vinte litros na carroceria da sua caminhonete. No meio do caminho para casa, seu ajudante olhou pelo vidro traseiro, viu a lata de óleo e avisou meu pai. Com certeza ele já sabia que a polícia estava prendendo quem fosse apanhado carregando mercadoria retirada no saque.
Apavorado, acelerou o carro e, ao chegar em casa, tirou a lata da carroceria, levou-a para o fundo do quintal onde havia uma hortinha, cavou um buraco e lá enterrou a dita cuja.
Ainda muito nervoso, quando voltava para a entrada da casa, deu de cara com um oficial da polícia, em uniforme de gala, entrando pelo portão. O pobre não conseguia encontrar palavras para explicar o inexplicável. Foi a gargalhada do policial que o tirou daquele estupor. “Oi tio, não está reconhecendo seu sobrinho? Sou eu o Hermano, filho de sua irmã!”
Pois é. Foi assim que fiquei sabendo que além do corpo do exército enviado para conter a revolta popular, também um contingente da Policia Especial, a tropa de elite da Policia Política do Getulio, fora acionada. Esse meu primo era oficial daquela corporação, famosa pela truculência com que atuava na repressão às manifestações contra o governo.
Alguns dias depois … a lata de óleo foi “exumada”.
*Filósofo e psicólogo e ex-professor de Psicologia do Trabalho na PUC/SP. E-mail: awbiscaro@uol.com.br