O livro vem acrescentar subsídios às reflexões sobre a quarta idade, ou longevidade avançada, apresentando as inquietações de “primeira mão” por meio dos depoimentos daqueles com 85 anos e mais. Por seu objeto destacam a gerontologia, o estudo do envelhecimento dos indivíduos e da população, além de suas condições de vida, e não a geriatria, disciplina médica que trata do conjunto das doenças associadas ao envelhecimento.
Christian Lalive d´Epinay e Stefano Cavalli (*). Resenha feita por Vera Brandão e Beltrina Côrte(**)
O livro Le Quatrième Âge ou la dernière étape de la vie, de autoria dos pesquisadores Christian Lalive d´Epinay e Stefano Cavalli da Universidade de Genebra (Suíça), apresenta os principais resultados do programa de pesquisa denominado AWILSOO – Swiss Interdisciplinary Longitudinal Study on the Oldeste Old – estudo longitudinal tendo como objetivos: explorar as trajetórias de vida e saúde na longevidade avançada – la grande viellesse; as formas de organização da vida nessa etapa; os acontecimentos que afetam os mais longevos e os arranjos postos em prática pelos velhos e seus próximos.
O estudo foi organizado em duas etapas: 1) acompanhamento sistemático de duas coortes de octogenários entre 1994-2004 e entre 1999-2004; 2) uma aproximação etnográfica, a partir de entrevista aprofundada, com a finalidade de entender a percepção subjetiva do processo de fragilização e seus modos de enfrentamento. Estas pesquisas entrecruzam-se com outras realizadas, na mesma perspectiva, em diferentes cantões suíços em 1979 e 1994, somadas a outra de grande abrangência no período 2011-2012.
Se juntam a esses resultados os obtidos na pesquisa internacional CEVI – Changements et événements au cours de la vie – que buscou estudar tanto a percepção que tem os adultos, de diferentes faixas etárias, das mudanças que interferem em suas vidas, como as da sociedade e do mundo ao longo desse processo. As pesquisas entrecruzadas apresentam dupla perspectiva: do observador/ pesquisador sobre o envelhecimento, e o testemunho daqueles que relatam seu processo pessoal, como expressão livre, pois “a narrativa se constrói com carne e sangue, a lágrimas e risos, composta dos fragmentos do vivido, em palavras e emoção” (p. 16).
O livro vem acrescentar subsídios às reflexões sobre a quarta idade, ou longevidade avançada, apresentando as inquietações de “primeira mão” por meio dos depoimentos daqueles com 85 anos e mais. Por seu objeto destacam a gerontologia, o estudo do envelhecimento dos indivíduos e da população, além de suas condições de vida, e não a geriatria, disciplina médica que trata do conjunto das doenças associadas ao envelhecimento.
Segundo os autores, na concepção teórica, o “curso de vida” humano é concebido como totalidade composta de uma sequência de desenvolvimentos e transformações impostos pela natureza e modulados pelo ambiente social. Importante destacar que as pesquisas têm como base de dados a população suíça, que vive em uma sociedade pós-industrial, com elevado nível de vida e cobertura social bem desenvolvida.
Naturalmente, existe uma grande diferença em relação à população brasileira, pois temos, neste imenso país, diferenças relevantes no modo de envelhecer, de acordo com cada região. Consideramos que esse processo de envelhecimento populacional pode ser observado em diferentes países com importantes diferenças no grau de desenvolvimento, mas com questões existenciais de fundo semelhantes. As reflexões propostas pela obra referida nos indicam caminhos futuros no enfrentamento que se exige frente ao aumento da população de octogenários e nonagenários, que já se constata e que o esperado desenvolvimento econômico e social nos apresentará.
Na denominada quarta idade apresentam-se dois estágios de comprometimento: a dependência funcional – atividades de vida diária comprometidas; e a fragilidade – com independência relativa, mas com dificuldades em ao menos dois domínios: sensoriais, mobilidade, metabolismo energético, memória ou distúrbios psíquicos. A independência está ligada a preservação da capacidade funcional, e sem problemas de saúde relevantes.
Afirmam Lalive d’Epinay e Cavalli que “a característica da população idosa – e que a distingue radicalmente dos outros grupos etários – é a extrema diversidade nos quadros de saúde, ou seja, no envelhecimento a saúde se destaca como a maior fonte de desigualdade” (p. 24). Esses estudos nos fazem refletir sobre o curso de vida individual na velhice em duas etapas: terceira idade e quarta idade, e que pode não ser atemorizante como nos fazem crer as representações coletivas contemporâneas, transformando-a em imagem de doenças degenerativas e diferentes formas de dependência crônica.
Ela é também a idade da experiência vital do processo de enfraquecimento das faculdades físicas e psíquicas e a dependência um risco, mas não um destino. O processo de fragilização é inicialmente imperceptível, e seus efeitos se instalam gradualmente de modo adaptativo – as perdas leves vão sendo incorporadas “naturalmente” ao cotidiano sem mudanças notadas como significativas. Mas existe um momento de desequilíbrio, causado por uma doença ou acidente, denominado de “limiar de insuficiência” que marca o início do estado de fragilidade, motivo ainda de discussões teóricas em seu estabelecimento.
Nas pesquisas, por meio dos depoimentos dos velhos cidadãos, se percebe o processo de autoidentificação e o olhar contrastante que têm sobre si e a idade atribuída, e a surpresa que esse fato lhes causa: Idosos? Sim! Velhos? Não! Um ponto que se destaca é como a entrada na velhice, bem como para os já octogenários e nonagenários, se apresenta para muitos de forma imperceptível, por conta das adaptações realizadas e incorporadas gradativamente, pela sucessão de pequenos incidentes físicos e /ou pessoais. Outra é a percepção causada por um evento súbito, de valor simbólico ou físico, como um acidente, queda, ou outra, que mesmo de pequenas proporções, repercute de maneira definitiva no reconhecimento da entrada na velhice. Esse impacto indica o corte abrupto na sensação de bem-estar na idade avançada.
Os autores constataram que os idosos recusam as marcas da idade cronológica como marcadores da velhice, pois para eles a consciência da velhice é sempre sustentada por uma experiência vivida de fragilização, como doenças e acidentes seguidos de hospitalizações, perdas simbólicas, de amigos e familiares, especialmente filhos, questões que levam os indivíduos a ultrapassar o “limiar de insuficiência”. Reconhecerem-se como velhos implica admitir o pertencimento à quarta idade, e à consequente fragilidade.
Os autores destacam que as “metamorfoses no cotidiano” estão relacionadas com diferentes fatores como: gênero, escolaridade, nível de profissionalização, entre outros, no processo de recusa – aceitação das dificuldades e crescentes níveis de fragilidade. Os processos de enfrentamento, pelos muito idosos, são por eles classificados como: constatação; aceitação / recusa; reconstrução de si; mudanças ou adaptações no modo de vida, exemplificadas pelas expressões: Acabou! No movimento de aceitação: ‘É preciso’!; e no de recusa: ‘Não posso aceitar’! Observam que alguns têm poder de enfrentamento e resiliência frente à dor física e emocional quando prevalece a aceitação: prova de que o indivíduo tem recursos internos para enfrentar e energia para superar as dificuldades, expressas de forma reflexiva, marcando a conscientização de que a realidade não pode ser mudada. As formas ‘É preciso aceitar’; ‘É preciso fazer’; ‘É preciso se adaptar’, indicam a consciência que a ação é interna, pessoal, o que não quer dizer, necessariamente, resignação, mas ponto de partida para novas possibilidades e oportunidades ‘o que podemos fazer com o que temos?’, buscando um novo equilíbrio possível.
A perspectiva do “É preciso” implica uma atitude de engajamento pessoal ‘não se entregar’ ou ‘é preciso ter o moral elevado’, e muitos conseguem manter-se emocionalmente estáveis apesar da fragilização, um processo de reconstrução de si. A comparação com os que têm situações piores, nomeada de “comparação social descendente”, é uma das estratégias para aproveitar o que é possível.
A leitura do livro Le Quatrième Âge ou la dernière étape de la vie nos incita a reflexão, abre caminhos para pesquisas e, pela escuta dos depoimentos dos idosos, nos sensibiliza para uma prática e escuta ainda “descuidada”.
Referências
Lalive d’Epinay, C., & Cavalli, S. (2013). Le quatrième âge ou la dernière étape de la vie. Lausanne: Presses Polytechniques et Universitaires Romandes.
AWILSOO – Swiss Interdisciplinary Longitudinal Study on the Oldeste Old. Recuperado de https://cigev.unige.ch/fr/recherches/recherchesterminees/ swilsoo/
(*)Resenha do livro de Christian Lalive d´Epinay e Stefano Cavalli (2013). Le Quatrième Âge ou la dernière étape de la vie. Presses polytechniques e universitaires romandes. Collection – Le savoir suisse: Lausanne.
* Vera Brandão, doutorado em Ciências Sociais/Antropologia e pós.doc em Gerontologia Social pela PUC-SP e Beltrina Côrte, doutorado e pós.doc em Ciências da Comunicação pela USP. Ambas são pesquisadoras do Grupo de Pesquisa Longevidade, Envelhecimento e Comunicação, da PUC-SP, certificado pelo CNPq, e editoras do Portal do Envelhevimento e Revista Portal de Divulgação. Este texto foi publicado na Psic. Rev. São Paulo, volume 25, n.2, 415-418, 2016.