As notícias chocantes sobre as mortes de idosos institucionalizados nos EUA, o país mais poderoso do mundo, com cadáveres empilhados, acondicionados em sacos plásticos e sepultamento coletivo, em valas comuns, nos remetem às cenas de horror da necropolítica dos campos de concentração. Em todo o mundo os maiores de 60 anos, representam 80% dos óbitos.
A expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Exercitar a soberania é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder. (Achille Mbembe[1])
O conceito de necropolítica foi desenvolvido pelo historiador camaronês Achille Mbembe, professor da Universidade de Joanesburgo e da Duke University, nos Estados Unidos. Historiadores e cientistas políticos brasileiros, adotaram o conceito de Mbembe, na análise de como o estado brasileiro, e sua política neoliberal, prioriza o controle social, principalmente, através das políticas de segurança pública. Quais os grupos sociais que estão “marcados para morrer”, pela mão das forças de segurança, que detém o poder concedido pela lei, para exercer a violência e até mesmo a execução, sob a proteção da excludente de ilicitude na legítima defesa?
A necropolítica tem sido política de estado no Brasil, nas ações violentas das polícias nas favelas e comunidades das periferias urbanas, principalmente, contra a população negra e jovem.
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No Brasil, à semelhança dos Estados unidos, a pandemia de Covid 19 tem sido tratada pelos governantes como uma oposição entre as políticas públicas de saúde, orientadas pela comunidade científica, em confronto com a política econômica neoliberal. Estabelecendo um falso e perverso dilema entre a vida e o mercado. A pandemia e os alguns medicamentos como a cloroquina e o hidroxicloroquina, foram politizadas no debate entre governo, oposição e comunidade científica. O isolamento social, adotado pela Organização Mundial de Saúde e pela maioria dos países mais afetados pela pandemia, tem sido contestado com argumentos bizarros.
Em tempos de pandemia de Covid 19, o grupo dos idosos foi estigmatizado como o subgrupo da espécie humana “marcado para morrer”. Como o exemplo simbólico de Dan Patrick, vice governador do Texas, de 70 anos, que se ofereceu em sacrifício para salvar a economia. Segundo ele, os idosos deveriam ser sacrificados para que os netos pudessem trabalhar.
As notícias chocantes sobre as mortes de idosos institucionalizados nos Estados Unidos, o país mais poderoso do mundo, com cadáveres empilhados, acondicionados em sacos plásticos e sepultamento coletivo, em valas comuns, nos remetem às cenas de horror da necropolítica dos campos de concentração. Em todo o mundo os maiores de 60 anos, representam 80% dos óbitos.
Nos Estados Unidos, atualmente o epicentro da pandemia, a medicina de emergência é reduzida no setor privado pela pressão de lucros a curto prazo, e no setor público pela ausência da cobertura universal. Em 3 meses de pandemia, já morreram o mesmo número de americanos do que em 9 anos da guerra do Vietnã.
Qual a prioridade da sociedade em proteger idosos com incapacidades funcionais e cognitivas, idosos fragilizados por doenças crônicas como hipertensão/doenças cardíacas, diabetes? Ou a maioria dos nossos idosos, vulneráveis pela ausência de políticas públicas na atenção básica de saúde, vivendo em moradias precárias sem água e saneamento básico?
Ao longo destes três meses de pico da pandemia, de cenas de necropolítica, tomamos conhecimento de inúmeras narrativas do conflito de profissionais de saúde, ao serem obrigados a escolher entre quem vai viver e quem vai morrer.
“Colapso é uma situação em que os hospitais e os centros de atendimento ficam completamente lotados, sem condições de receber qualquer pessoa, tenha ela infarto, AVC, apendicite, desidratação ou Covid-19. Sem vagas nas UTIs nem ventiladores mecânicos para todos, os médicos são obrigados a decidir quem vai morrer por falta de ar, a mais sofrida das mortes.” Dráuzio Varela[2]
Ainda não podemos avaliar os impactos da crise global provocada pela pandemia. Em relação à saúde, a sociedade não dispõe de recursos para minimizar o sofrimento, principalmente dos mais pobres, ou erradicar a doença, já que uma vacina ainda é uma possibilidade remota. Em relação à economia, o desemprego e a falência das pequenas e médias empresas em todo o mundo, trazem previsões pessimistas como o aumento da fome e da miséria, agravadas pela política dos governos em privilegiar os recursos do tesouro para a proteção dos muito ricos. E em relação à política, as grandes crises provocadas por guerras, desastres naturais e catástrofes, podem criar o ambiente para o avanço de governos autoritários e ameaças às democracias.
Quanto ao impacto humanitário, como vamos emergir desta crise global, sanitária, econômica e social? Seremos capazes de provocar uma mudança nas grandes questões que permitiram a propagação da crise? Reverter para o estado de bem-estar social, garantindo saúde e educação universais, proteção previdenciária e proteção nas relações de trabalho? Ou pelo menos no plano do simbólico, tentar ultrapassar de modo emancipatório este sistema que se afunda na propagação da morte em nome da valorização do capital?
Notas
[1] Texto disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169
[2] Texto disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/drauziovarella/2020/04/coronavirus-nos-fara-pagar-a-conta-da-desigualdade-social-do-brasil.shtml
Foto destaque: Jenna Hamra/pexels