Falar de livros é sempre um imenso prazer, principalmente quando a tarefa é comentar o recém lançado “Podemos Dizer Adeus Mais uma Vez” do psiquiatra francês David Servan-Schreiber sobre seus últimos meses de vida. Neste tocante relato, o médico se despede dos familiares, amigos e leitores e tenta abordar as questões da vida que todos têm de enfrentar.
Luciana H.Mussi *
O psiquiatra estudou para descobrir como poderia contribuir para a própria cura e criou um programa anticâncer, baseado em evidências científicas, que o ajudou a fortalecer seu organismo e a superar uma recaída anos mais tarde. Seu livro “Anticâncer”, trabalha numa postura proativa do paciente, ao mesmo tempo em que defende o uso de terapias alternativas aliadas à medicina tradicional.
Sobre o livro, escreveu a revista francesa Paris Match, “um manual de vida estarrecedor”. “Ter a possibilidade de preparar a partida é, na verdade, um grande privilégio”, escreveu ele.
Lembrando um dos Sermões do poeta inglês John Donne (1572-1631): “A humanidade, como um todo, forma um grande livro. Quando um homem morre, um capítulo não é arrancado (…) e sim traduzido para um idioma melhor. E cada capítulo deve assim ser traduzido. Deus emprega vários tradutores. Alguns trechos são traduzidos pela idade (…) outros, por doenças; alguns pela guerra. Mas a mão de Deus reúne todas as folhas soltas (…) e as coloca naquela biblioteca (…) em que os livros se abrem uns para os outros.”
Assim como a literatura, os filmes de curta metragem também trabalham as questões desta delicada e controversa “preparação para a morte”. Um belíssimo e comovente exemplo, que beira, em alguns momentos, a comédia, é o curta de 2002 “Morte.” do cineasta brasileiro José Roberto Torero. Entre túmulos, cânticos religiosos, flores e a bagagem acumulada pela vida, um casal, interpretado pelos atores Paulo José e Laura Cardoso, se prepara para a “grande viagem”, numa história contada em diálogos tocantes:
Ela: – Será que vai demorar muito?
Ele: – Não sei.
Ela: – Você está com medo?
Ele: – Um pouco.
Ela: – Essa espera é que dá agonia.
Ele: – Tem que ter paciência, um dia ela chega.
Ela: – O que a gente faz enquanto isso?
Ele: – Esse é o problema.
É preciso ter coragem e acima de tudo honestidade para descrever o próprio fim, dia após dia, sem se entregar a lamentos desesperados ou brigas íntimas com um Deus silencioso que nega a sua presença. Servan-Schreiber optou pelo caminho do conhecimento e tudo aquilo que a lucidez das palavras e das emoções poderiam proporcionar a ele e a seus leitores. Mas nem pensem que Servan-Schreiber não tinha medo da morte, como não ter?
Tendo na sua formação as lições de coragem dadas pelo pai na infância, como “aguentar firme mesmo tremendo como vara verde”, o psiquiatra procurou seguir a risca as palavras do pai num relato, muitas vezes tão real e cáustico que chega a incomodar. É interessante porque numa leitura como esta procuramos sempre uma dose de sentimentalismo ou até de pieguice, mas neste caso, encontramos a realidade de uma doença cruel, devastadora, que no início descansa calmamente em nosso corpos, quase despercebida e momentos ou messe, anos depois se manifesta como um monstro devastador denunciando a nossa própria consciência de uma inexorável finitude.
Num trecho de seu livro, Servan-Schreiber conta sobre o dia em que chamou a mulher, Gwenaëlle, para planejar o futuro dos filhos depois de sua morte — Charlie, então com 2 anos, e Anna, com apenas 6 meses. De seu primeiro casamento, ele teve Sacha, na ocasião com 16 anos. “Fiquei muito surpreso ao descobrir até que ponto a redação de um testamento pode ser gratificante. Ela cria um sentimento de domínio total e, ao mesmo tempo, de generosidade, doação, transmissão”, descreveu.
Pensar que esta derradeira conversa com a esposa e filhos foi um momento natural, aceito por um paciente terminal que lida com sua morte bravamente, é não compreender a essência de um último relato, o próprio epitáfio escrito e sentido em cada palavra por seu autor.
“Podemos Dizer Adeus é também uma resposta aos leitores que talvez venham a se perguntar como o autor do livro “Anticâncer” morreu de câncer”, disse a Revista Veja o engenheiro Franklin Servan-Schreiber, um dos irmãos do psiquiatra. E ela está na página 53: “Podemos pôr todos os nossos trunfos no jogo. Mas o jogo nunca está ganho”. Este é um dos maiores enigmas da existência: não há perdas ou ganhos neste jogo, apenas conhecimento, aprendizado.
Segundo a reportagem, “terminado o livro, o médico recolheu-se na antiga casa da família na região francesa da Normandia. Ali, nas últimas semanas, recebeu a visita de parentes e amigos. A mulher e os filhos pequenos o visitavam com frequência. Servan-Schreiber morreu à noite, por volta das 9 horas, na companhia da mãe e dos três irmãos.
Sobre o medo da morte, o diretor americano Woody Allen não perde piada: “Não que eu esteja com medo de morrer. Apenas não queria estar lá quando isso acontecesse”. Servan-Schreiber (como todos nós), viveu para a vida e seguiu numa viagem, em princípio, sem passagem de volta. Permanecem as palavras expressas pela alma do autor em “Podemos Dizer Adeus Mais Uma Vez”. Assim é viver!
Referências
BERGAMO, G. (2011). Receita para a boa morte. Disponível Aqui. Acesso em 05/10/2011.
DONNE, J. Fragmento de Meditações XVII. Disponível Aqui. Acesso em 23/07/2010.
IMAGEM: DAVID SERVAN-SCHREIBER. Disponível Aqui. Acesso em 05/10/2011.
SERVAN-SCHREIBER, D. (2011). Podemos Dizer Adeus Mais uma Vez. Disponível Aqui. Acesso em 08/10/2011.
TORERO, J.R. (2002). Morte. Disponível Aqui. Acesso em 08/10/2011.