O escritor húngaro Péter Esterházi une ficção, sonho, delírio e autobiografia em livro sobre a morte da mãe. Os últimos e dolorosos dias no hospital. O velório. Ali o espaço é para o humor ácido da descrição dos presentes, os conflitos com o pai, o irmão e a irmã. As fofocas familiares, o incômodo em ter que fazer sala para tantos convidados quando só se quer estar só.
Juliana Passos *
Cada página – nenhuma delas numerada – está diagramada em formato de lápide e pode ser lida quase como um fragmento independente. Na parte inferior, uma reflexão, muitas vezes de relação enigmática com o que foi dito acima. Para explicar sua proposta, Esterházy opta por um prefácio, que reconhece não ser muito utilizado em literatura. Fazia duas semanas que sua mãe havia morrido, o ano era 1980. “Tenho de me entregar ao trabalho antes que a necessidade demasiado ardente de escrever sobre ela recue para o mutismo covarde com que reagi à notícia da morte”. Mais adiante comenta: “Eu me horrorizo, e assim me sinto bem de novo: o tempo que passa não dói”.
Não há pudores na escrita de Esterházi. Sua linguagem é coloquial e direta. Utiliza as gírias do momento e inventa palavras. Por um instante isso trouxe maior dificuldade para o tradutor para o português, Paulo Schiller, mas que contou com total apoio do autor, que reúne as principais dúvidas de seus tradutores e está sempre em contato com eles.
Logo nas primeiras páginas há o reencontro com os familiares e amigos. Os últimos e dolorosos dias no hospital. O velório. Ali o espaço é para o humor ácido da descrição dos presentes, os conflitos com o pai, o irmão e a irmã. As fofocas familiares, o incômodo em ter que fazer sala para tantos convidados quando só se quer estar só. Delírios e sonhos sobre sexo e desejo também estão muito presente nessas páginas. Algo inevitável para um autor que trabalha muito a pornografia em seus textos. Paulo Schiller diz que esse o humor sarcástico de Esterházy e os traços sexuais nas situações mais trágicas são traços de escritores da Europa central, como Kafka.
A liberdade com que escreve parece contrastar com sua formação, que pode remeter à outra imagem. Péter Esterházi é matemático. A ideia de colocar sonhos no papel tem inspiração na sua mãe, que parece ser a narradora da segunda parte do livro. Em uma das reflexões do pé da página está escrito: “Chega de perder tempo na vida. Todos os dias, de manhã, anote seu sonho. Sem acrescentar nem suprimir nada. O que você acha? A partir disso vamos escrever um livro, eu darei a ele uma forma artística, e vamos encher o bolso de dinheiro!”. Essa foi uma proposta real à sua mãe, como o autor comenta em entrevista ao editor da Cosac Naify, Emilio Fraia. Não houve tempo, ela morreu pouco tempo depois.
A presença da autobiografia é constante em suas obras. Parte de uma tradicional família da aristocracia húngara, Esterházi escreveu um livro sobre sua linhagem familiar, Harmonia Caelestis, considerado a grande obra-prima do autor, dentre 30 livros publicados. Em todos os casos, os nomes são preservados. A mãe, nesta obra, tem o nome de Beatriz Viterbo, personagem de Jorge Luis Borges em O Aleph. Sobre a questão, ele faz um alerta novamente no prefácio: “Não uso a língua, não quero descobrir a verdade, e menos ainda expô-la diante dos senhores. Também não me ocorre nomear o mundo, e, consequentemente, não nomeio coisa alguma, pois nomear é o mesmo que sacrificar para sempre o nome à coisa nomeada…”.
Seu estilo é descrito na edição brasileira de Uma mulher pelo escritor alemão Ingo Schulze. “Os livros dele representam o conjunto das condições para uma experiência. Ele não é um avô contador de histórias, não quer ninar ninguém com suas fábulas. Ele sempre interrompe para gritar: corta! E então você lê mais três páginas e pensa: “Cara! Quantas coisas esse homem viveu!”.
A edição brasileira foi lançada em 2011 pela Cosac Naify, mais de 15 anos após sua publicação original e um ano depois de publicar Uma mulher, obra que o tornou um dos destaques da Feira Internacional de Paraty e onde foi lançado Verbos auxiliares do coração. A escolha pelo título não é um acaso: não existem verbos auxiliares em húngaro. Como promessa, ele diz “Um dia vou escrever tudo isso com mais precisão”.
Os verbos auxiliares do coração
Péter Esterházy, 1985
Tradução Paulo Schiller Cosac Naify,
2011
72 páginas
Fonte: Revista Eletrônica de Jornalismo Científico, 10/11/2014. Disponível Aqui